Projeto de Leitura


Projeto de leitura desenvolvido em uma escola do município de Sooretama

Professora: Renedir de Souza Rozário
Escola: Álvaro Marques de Oliveira
Projeto de Leitura
Mais leitura... mais palavras...

Nos dias de hoje por ser mais informatizado e mais comunicações via imagens gráficas, muitos deixaram de lado o bom hábito da leitura. O celular, a internet e a televisão são os pontos centrais na mente das crianças nos dias atuais, ou seja, para assistir a um desenho, saber de uma notícia e até mesmo se comunicar.
Meios de comunicação gráfica é de suma importância para o desenvolvimento intelectual do indivíduo, porém não mais importante do que a leitura convencional o qual é um treino da escrita e desenvolvimento à compreensão ortográfica.
Diante dessa ferramenta gráfica o que fazer para que alunos tenham interesse na leitura convencional? O que fazer para estimular o desejo e a apreciação de leituras palpáveis? E é essa a indagação de muitos gestores que se preocupam e querem reverter esse quadro o qual tem nos dado uma somatória de repetência e evasão escolar na atualidade.

A leitura é um dos meios pelo qual se obtém conhecimento das mais diversas áreas facilitando então, a argumentação e vocabulário para a produção de um texto oral ou também escrito. A escola tem grande parcela de responsabilidade para com o incentivo à leitura, pois promove o hábito nas crianças, estas irão crescer sabendo que a leitura enriquece o conhecimento e da grande importância que ela exerce na vida do ser humano.

Acreditamos que há grande necessidade do ser humano adquirir ao longo de sua vida uma boa bagagem de leitura, pois além de obter conhecimento, desenvolve um potencial crítico, para então questionar, duvidar, com isso saber mais e expor opiniões sem medo, e acima de tudo permite interpretar o mundo.
Este projeto visa contribuir com os alunos, dando-lhes a possibilidade para que os mesmos possam, usando de sua criatividade, recontar a partir dos seus pontos de vista histórias que chegaram até eles através do discurso oral e escrito. A comunicação é parte inerente do ser humano. Desde cedo procuramos estabelecer comunicação, seja de modo verbal ou não verbal. A escola deve oferecer condições para que os alunos possam aprimorar seus conhecimentos a respeito da língua materna, bem como, dos processos do ato de comunicação.

A prática da leitura se faz presente em nossas vidas desde o momento que começamos a “compreender” o mundo à nossa volta. No constante desejo de decifrar e interpretar o sentido das coisas que nos cercam, de perceber o mundo sobre diversas perspectivas, de relacionar a realidade ficcional com a que vivemos, no contato com um livro, enfim, em todos os casos estamos, de certa forma, lendo – embora, muitas vezes, não nos demos conta. Desse modo, a leitura se configura com um poderoso e essencial instrumento libertário para a sobrevivência do homem.

Há, entretanto, uma condição para que a leitura seja de fato prazerosa e válida: o desejo do leitor. A leitura não pode se tornar uma obrigação, porque quando ela se transforma em obrigação, a leitura se resume em simples enfado. Para suscitar esse desejo e garantir o prazer da leitura, daremos aos nossos alunos o direito de escolher o que quer ler, o de reler, o de ler em qualquer lugar.

 Acredita-se também que o hábito da leitura é fundamental para a prática de produção de texto, pois o fracasso na produção de texto deve-se justamente ao fato de haver pouca leitura. Sendo assim, o propósito deste trabalho é, acima de tudo incentivar o aluno a leitura e a escrita em todos os seus aspectos e criar condições para que tais atividades se desenvolvam de modo eficiente e produtivo.


JUSTIFICATIVA


Para prepararmos os nossos educando para esse mundo moderno e contemporâneo, percebe-se a necessidade de prepará-los para enfrentar mutações. Portanto, uma sociedade letrada, precisa saber ler, escrever e principalmente se comunicar/falar. A valorização social de uma pessoa, atualmente, está intimamente ligada ao seu desempenho escrito, mas também ao oral, pela razão da ampla exposição aos meios de comunicação. Pode-se dizer que é através da leitura que o indivíduo “pega gosto” pela formação de textos, querendo que todos leem o que escrevem. O mundo é bom, mas com a leitura, ele torna-se melhor ainda.

É importante ressaltar que, qualquer que seja o ramo da atividade, o profissional sabe que o êxito dele depende, além dos conhecimentos próprios da área, de sua habilidade na leitura, que resultará em competências quanto ao manejo da língua. Enfim, todo saber é transmitido através desse instrumento primordial da comunicação humana na qual a leitura é uma das protagonistas.
Imbutir ao projeto temas transversais o qual é pertencente aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), criados a partir do Plano Nacional de Educação (PNE), estabelecido em 1999, os quais não constituem uma imposição de conteúdos a serem ministrados nas escolas. São apenas propostas nas quais as secretarias e as unidades escolares poderão se basear para elaborar seus próprios planos de ensino.
Esses temas, que correspondem a questões presentes na vida cotidiana, foram integrados no currículo por meio do que se chama de transversalidade. Ou seja, pretende-se que esses temas integrem as áreas convencionais de forma a estarem presentes em todas elas, relacionando-as às questões da atualidade e que sejam orientadores também do convívio escolar. Assim, por exemplo, a área de Ciências Naturais inclui a comparação entre os principais órgãos e funções do aparelho reprodutor masculino e feminino, relacionando seu amadurecimento às mudanças no corpo e no comportamento de meninos e meninas durante a puberdade e respeitando as diferenças individuais. Dessa forma, o estudo do corpo humano não se restringe à dimensão biológica, mas coloca esse conhecimento a serviço da compreensão da diferença de gênero (conteúdo de Orientação Sexual) e do respeito à diferença (conteúdo de Ética).
Assim, segundo orientação dos PCNs, não se trata de que os professores das diferentes áreas devam “parar” sua programação para trabalhar os temas, mas sim de que explicitem as relações entre ambos e as incluam como conteúdos de sua área, articulando a finalidade do estudo escolar com as questões sociais, possibilitando aos alunos o uso dos conhecimentos escolares em sua vida extra-escolar. Não se trata, portanto, de trabalhá-los paralelamente, mas de trazer para os conteúdos e para a metodologia da área a perspectiva dos temas. Segundo o MEC, caberá aos professores mobilizar tais conteúdos em torno de temáticas escolhidas, de forma que as diversas áreas não representem pontos isolados, mas digam respeito aos diversos aspectos que compõem o exercício da cidadania.
A proposta de transversalidade pode acarretar algumas discussões do ponto de vista conceitual como, por exemplo, a da sua relação com a concepção de interdisciplinaridade. De acordo com os PCNs, apesar de ambas apontarem a complexidade do real e a necessidade de se considerar a teia de relações entre os seus diferentes e contraditórios aspectos, diferem uma da outra, uma vez que a interdisciplinaridade refere-se a uma abordagem epistemológica dos objetos de conhecimento, enquanto a transversalidade diz respeito principalmente à dimensão da didática.



OBJETIVO GERAL

Estimular nos alunos um processo de leitura permanente para estar continuamente atualizados frente aos desafios e perspectivas do mundo moderno/contemporâneo, ajudando - os a se tornarem sujeitos leitores e escritores.

OBJETIVOS ESPECÍFICO


• Incentivar a formação de leitores;
• Despertar o gosto pela leitura, formando estudantes mais críticos, coerentes e com maior facilidade de interpretação;
• Entender que a leitura e a escrita desafiam nossa imaginação e possibilita nosso crescimento intelectual;
• Utilizar diferentes linguagens como meio para produzir, expressar e comunicar suas ideias;
• Permitir a construção de pontos de vista de uma visão de mundo, e atribuição de sentido;
• Ampliar o vocabulário, as experiências de leitura com o grupo e individualmente;
• Incentivar o estudante a compreender e utilizar melhor as regras ortográficas da Língua Portuguesa;
• Oportunizar aos estudantes o acervo de inúmeras obras literárias de variados autores, buscando sempre, ampliar seus conhecimentos e suas capacidades criativas.


FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A leitura contribui para o prazer pessoal e amplia os interesses do indivíduo. Todas essas conquistas podem levar a uma vida bem sucedida.

A leitura ajuda no desenvolvimento e na personalidade do indivíduo, e é um dos aspectos mais importantes para o aluno como ponto de partida para a aquisição de conhecimentos, meios de comunicação e socialização.
Ler é um processo dinâmico e ativo implicando não só, a apreensão do significado do texto, mas a incorporação de nossa experiência e visão de mundo como leitor. A cada leitura essa interação dinâmica leitor/texto favorece a produção e a escrita de novo conhecimento e a expressão de uma linguagem diferenciada.
Ler é quase comentar um texto; é sublinhar, com a voz, as palavras essenciais... É ainda se colocar em harmonia com os sentimentos que o autor exprime, entregá-los e comunicá-los em torno de si: um sorriso, uma voz emocionada, olhos em que se pode ver lágrimas despontando, tudo isso é um comentário que dura longamente. Uma fisionomia fala tanto quanto a voz. (Bulletin Pédagogique du Pas-de Calais, 1907 apud: Chartier &Hébrard. p.261).  A leitura é um ato que, também, depende de estímulo e motivação. A prática da leitura é uma tarefa essencial para a construção do conhecimento e um deflagrador do sentimento e opinião crítica do indivíduo.

Ler onde e quando mais lhe convém, no ritmo que mais lhe agrada, podendo apressar ou retardar a leitura, interrompê-la, reler ou parar para refletir, o seu bel-prazer. Ler o que, quando, onde e como bem entende. Essa flexibilidade garante o interesse contínuo pela leitura, tanto em relação à educação quanto ao entretenimento.

BAMBERGER afirma que através da leitura favorece:

[...] a remoção das barreiras educacionais de que tanto se fala, concedendo oportunidades mais justas de educação principalmente através da promoção do desenvolvimento da linguagem do exercício intelectual, e aumenta a possibilidade de normalização da situação pessoal do indivíduo.
A produção de texto está relacionada com a prática de leitura de cada um. Quem lê produz e escreve mais.


FAIXA ETÁRIA

Este projeto será desenvolvido com os alunos do Ensino Fundamental I, compreendendo a faixa etária que correspondem do 1º ao 4ª ano. 


METODOLOGIA

Dentro de cada ano/série trabalhar de forma trimestral gêneros textuais e temas transversais.
A metodologia será descrita do 1º ano ao 4º ano.

1º ano:
1º Trimestre:
Parlendas, convites, cantigas de roda.
2º trimestre:
Trava-línguas, quadrinha, meios de comunicação escrita (bilhete/recado), textos informativos e receitas/bulas.
3º trimestre:
Contos, lendas, poemas.

A professora conta a história de um determinado livro e sorteia 1 (um) aluno para contar a parte que mais lhe chamou a atenção;
O aluno escolherá um livro, o qual deverá ser lido em sala de aula a professora sorteará um aluno para que faça seu relato perante os outros, e em seguida farão um desenho;

Será trabalhado durante o ano a história dos livros: “Os grandes clássicos. ”

Os alunos serão motivados a confeccionarem seus próprios livrinhos despertando sua imaginação através das gravuras.


2º ano:
1º trimestre:
Parlendas, convites, receitas, cantigas de roda e brincadeiras cantadas.
2º trimestre:
Trava-línguas, bilhete, quadrinha, meios de comunicação escrita (bilhete/recado, textos informativos.
3º trimestre:
Contos, lendas.

A professora se caracterizará como personagem de uma história escolhida antecipadamente, despertando nos alunos o encantamento com a contação de história;

Posteriormente os alunos escolherão um livro de sua preferência e farão a leitura do livro escolhido;
Será sorteado semanalmente 1(um) aluno para contar sua história e apresentar o livrinho aos colegas, usando a criatividade para envolver os colegas (fantoches, caracterização de personagem, confecção de cenário ...);
Após leitura farão desenho da parte que mais gostarão da história e deixarão em exposição;
Com os desenhos serão montados pastas que ao final do ano letivo cada aluno levará para casa.

3º ano:
1º trimestre:
Instruções e regras de jogo, meios de comunicação escrita (recado, bilhete, convite, cartão postal e carta).
2º trimestre:
Poemas, contos.
3º Trimestre:
Fábulas, crônicas, lendas e textos informativos.
Continuação de histórias iniciadas;
Confecção de livrinhos de temas variados.

4º ano:
1º Trimestre:
Notícias, entrevistas, meios de comunicação escrita (recado, bilhete, convite, cartão postal e carta).
2º Trimestre:
Fábulas, contos, mensagem de texto, e-mail.
3º Trimestre:
Charges, lendas Poema, crônicas e contos.

Confecção de livros de charges e tirinhas (recortes de jornais e revistas).
Cada aluno escolherá um livro, para leitura individual;
Ao término da leitura de cada livro o aluno deverá transcrever partes do livro de forma a resumi-lo, onde fará uma coletânea com os demais dos quais já leu.


CONCLUSÃO (AVALIAÇÃO)

A avaliação dar-se-á ao longo do ano (respeitando as faixas etárias), observando a capacidade de cada aluno, na leitura dos livros, na interpretação dos mesmos, na oralidade e no interesse.




http://revistaescola.abril.com.br/img/lingua-portuguesa/228-professora-desenho-g.jpg

A Professora de Desenho

Marcelo Coelho
FALANDO A VERDADE, ESCOLA É UMA CHATICE. PELO MENOS A MINHA ERA UMA CHATICE. ESSA HISTÓRIA DE APRENDER TABUADA, FAZER PROVA, LIÇÃO DE CASA... EU NÃO GOSTAVA. FICAVA FELIZ QUANDO APARECIA UMA GRIPE. EXISTE COISA MELHOR? EU JUNTAVA TODOS OS BRINQUEDOS EM CIMA DA CAMA. TRAZIAM REVISTINHAS. CHOCOLATES. TELEVISÃO NO QUARTO. ERA ÓTIMO.

DISSE QUE A ESCOLA ERA MUITO CHATA, MAS ESQUECI DE UMA COISA: AS AULAS DE DESENHO. ESSAS ERAM LEGAIS.

TODA SEXTA-FEIRA, DEPOIS DO RECREIO, A DONA MARISA (NAQUELE TEMPO A GENTE NÃO CHAMAVA A PROFESSORA DE "TIA", NEM USAVA SÓ O NOME DELA, SEM NADA, ASSIM: "MARISA"; TINHA DE SER "DONA MARISA") - ENFIM, A DONA MARISA SAÍA DA SALA, E ENTRAVA A PROFESSORA DE DESENHO. A DONA ANDRÉIA.

A DONA MARISA ERA MEIO GORDUCHA, USAVA COQUE NO CABELO E SE PINTAVA FEITO LOUCA. BATOM. SOMBRA AZUL NOS OLHOS. MEIO PERUA. EU NÃO GOSTAVA DA DONA MARISA.

MAS AÍ ENTRAVA A PROFESSORA DE DESENHO. A DONA ANDRÉIA ERA MOCINHA. TINHA CABELOS CASTANHOS. LISOS E COMPRIDOS.

A AULA DE DESENHO ERA UMA FARRA. A GENTE ABRIA OS CADERNOS, QUE NÃO TINHAM LINHAS, SÓ FOLHAS DE PAPEL EM BRANCO, PARA A GENTE FAZER O QUE QUISESSE. PODIA. DONA ANDRÉIA DEIXAVA.
ELA ERA LINDA.

UM DIA, ELA SE ATRASOU. O TEMPO IA PASSANDO, E ELA NÃO CHEGAVA. TODO MUNDO ESTAVA LOUCO PARA TER AULA DE DESENHO.

POR QUE SERÁ QUE ELA ESTAVA ATRASADA?

NESSA IDADE, A GENTE SABE MUITO POUCO DA VIDA DOS ADULTOS. TALVEZ A DONA ANDRÉIA TIVESSE BRIGADO COM O NAMORADO. PODE SER QUE O DIRETOR DA ESCOLA TIVESSE DADO UMA BRONCA NELA. VAI VER QUE TINHA ALGUÉM DOENTE NA FAMÍLIA.

MAS A GENTE NÃO QUERIA SABER DE NADA. SÓ QUERIA TER AULA DE DESENHO.

FOI QUANDO A DONA ANDRÉIA APARECEU. TODOS NÓS FICAMOS CONTENTES.

NÃO FOI SÓ CONTENTE. FOI UMA ESPÉCIE DE ALEGRIA TOTAL, DE GRITARIA, DE EXPLOSÃO.

ELA ENTROU NA CLASSE.

ALGUÉM GRITOU:
- É A ANDRÉIA! 
NÃO ERA O JEITO CERTO DE FALAR. TINHA DE DIZER "DONA ANDRÉIA". MAS ÀQUELA ALTURA NINGUÉM ESTAVA LIGANDO. TODO MUNDO COMEÇOU A GRITAR:

- É A ANDRÉIA! É A ANDRÉIA!

O BERREIRO FOI GANHANDO RITMO. COMO SE FOSSE TORCIDA DE FUTEBOL.

- AN-DRÉ-IA! AN-DRÉ-IA!

PARECIA UM JOGADOR ENTRANDO EM CAMPO. OU UM CANTOR DE ROCK.

- AN-DRÉ-IA! AN-DRÉ-IA!

ELA COMEÇOU FICANDO ALEGRE COM A ZOEIRA. DEU UM SORRISO. O SORRISO DELA ERA LINDO.

- AN-DRÉ-IA!

DEPOIS, ELA FICOU UM POUCO ASSUSTADA. NÃO ESTAVA ENTENDENDO A BAGUNÇA.

- AN-DRÉ-IA!

FOI ENTÃO QUE EU VI. ELA COMEÇOU A CHORAR.

E SAIU DA SALA.

NA HORA, NÃO ENTENDI.

FIQUEI PENSANDO.

QUEM SABE ELA SE ASSUSTOU MUITO. TALVEZ NÃO IMAGINASSE QUE A GENTE GOSTAVA TANTO DELA.

E, ÀS VEZES, MUITO AMOR ASSUSTA AS PESSOAS.

PODE SER QUE ELA TIVESSE FICADO BRAVA. TÍNHAMOS DE DIZER "DONA ANDRÉIA", E NÃO DISSEMOS. ERA MEIO CHOCANTE SÓ DIZER "ANDRÉIA", COMO SE ELA FOSSE IRMÃ DA GENTE, OU APRESENTADORA DE TELEVISÃO, OU EMPREGADA.

ELA TAMBÉM PODE TER CHORADO POR OUTRO MOTIVO QUALQUER. ESTAVA TRISTE COM O NAMORADO, OU COM ALGUMA DOENÇA DA FAMÍLIA, E TODA AQUELA ALEGRIA DA GENTE ATRAPALHANDO OS SENTIMENTOS DELA.

A ANDRÉIA NUNCA MAIS VOLTOU.

AS AULAS DE DESENHO ACABARAM. COMECEI A PERCEBER UMA COISA.

É QUE ÀS VEZES, QUANDO A GENTE GOSTA DEMAIS DE UMA PESSOA, NÃO DÁ CERTO. DÁ UMA BOBEIRA NA GENTE. A GENTE COMEÇA A GRITAR:

- ANDRÉIA! ANDRÉIA!

E A ANDRÉIA FICA SEM JEITO. NÃO SABE O QUE FAZER. SE ASSUSTA. SE ENCHE.

OUÇA ESTE CONSELHO.

SE VOCÊ GOSTA MUITO DE ALGUÉM, TOME CUIDADO ANTES DE FAZER ESCÂNDALO. NÃO FIQUE GRITANDO "ANDRÉIA! ANDRÉIA!". FINJA QUE VOCÊ SÓ ESTÁ ACHANDO A PESSOA LEGAL, NADA MAIS. SENÃO A ANDRÉIA SAI CORRENDO.

QUANDO A GENTE GOSTA DE ALGUÉM, TEM DE FAZER COMO SORVETE. DÁ UMA MORDIDINHA. MAS NÃO ENFIA O NARIZ E A BOCA NA MASSA DE MORANGO. SENÃO, VÃO ACHAR QUE A GENTE É IDIOTA.

AS PESSOAS DA MINHA CLASSE GOSTAVAM TANTO DA ANDRÉIA, QUE ELA FOI EMBORA. SE A GENTE FOSSE MAIS ESPERTO FINGIA QUE NÃO GOSTAVA TANTO.






ESCORRENDO
Ilustração: Thais Beltrame
 AOS 5 ANOS DE IDADE O MUNDO É ESMAGADORAMENTE MAIS FORTE DO QUE A GENTE. (AOS 30 TAMBÉM, MAS APRENDEMOS UMAS MANHAS QUE, SE NÃO ANULAM A DESPROPORÇÃO, AO MENOS DISFARÇAM NOSSA PEQUENEZ.)

A IGNORÂNCIA NÃO É UMA BÊNÇÃO, É UMA CONDENAÇÃO: COMPREENDER A ORIGEM DOS NOSSOS INCÔMODOS FAZ UMA GRANDE DIFERENÇA. MAS COMO, COM TÃO POUCAS PALAVRAS AO NOSSO
DISPOR? PALAVRAS SÃO FERRAMENTAS QUE USAMOS PARA DESMONTAR O MUNDO E REMONTÁ-LO DENTRO DA NOSSA CABEÇA. SEM AS FERRAMENTAS PRECISAS, FICAMOS A ESPANAR PARAFUSOS COM PONTAS DE FACAS, A DESTRUIR PORCAS COM ALICATES.

COM 2 ANOS, MEU NARIZ ESCORRIA SEM PARAR NA SALA DE AULA. EU NÃO SABIA ASSOAR, NEM SEQUER SABIA QUE EXISTIA ISSO: ASSOAR. APENAS ENXUGAVA O QUE DESCIA NA MANGA DO UNIFORME, CONFORMADO, ATÉ FICAR COM O NARIZ ASSADO.

LEMBRO-ME BEM DA SENSAÇÃO DA MEIA SENDO COMIDA PELA GALOCHA ENQUANTO EU ANDAVA. A CADA PASSO, ELA IA SE ENGRUVINHANDO MAIS E MAIS NA FRENTE DO PÉ, FALTANDO NO CALCANHAR, E
EU ACEITAVA O INFORTÚNIO COMO SE FOSSE UMA PRAGA ROGADA PELOS DEUSES, UMA SINA. NÃO PASSAVA PELA MINHA CABEÇA TROCAR DE MEIA, DESISTIR DA GALOCHA, PEDIR AJUDA AOS ADULTOS: A VIDA ERA ASSIM, NÃO HAVIA O QUE FAZER.

NUMAS FÉRIAS, MEU PAI APARECEU ANTES DO COMBINADO PARA PEGAR MINHA IRMÃ E EU NA CASA DOS MEUS AVÓS. DURANTE 400 QUILÔMETROS, FALOU QUE EXISTIAM PESSOAS BOAS E PESSOAS MÁS,
QUE ACONTECIAM COISAS QUE A GENTE NÃO CONSEGUIA ENTENDER, QUE MESMO AS PESSOAS MÁS PODIAM FAZER COISAS BOAS E AS PESSOAS BOAS, COISAS MÁS. JÁ QUASE CHEGANDO A SÃO PAULO,
CONTOU QUE NOSSO VIZINHO, DE 6 ANOS, TINHA LEVADO UM TIRO.

NAQUELA NOITE, ENQUANTO AS CRIANÇAS DA RUA BRINCAVAM - MAIS QUIETAS DO QUE O HABITUAL, SOB UM VÉU INOMINÁVEL -, UM DOS GAROTOS DISSE: "BEM-FEITO! ELE É MUITO CHATO".
HOJE, PENSO QUE PODE TER SIDO SUA MANEIRA DE LIDAR COM UMA REALIDADE ESMAGADORAMENTE
MAIS FORTE DO QUE ELE.

MEU VIZINHO, FELIZMENTE, SOBREVIVEU. NOSSA INGENUIDADE É QUE NÃO: FICOU ALI, ESTIRADA ENTRE AMENDOEIRAS E PARALELEPÍPEDOS, SENDO ILUMINADA PELA LÂMPADA INTERMITENTE DE
MERCÚRIO, DEPOIS QUE TODAS AS CRIANÇAS VOLTARAM PARA SUAS CASAS.









O SUCESSO DA MALA

Ilustração: Ana dos Anjos
ILUSTRAÇÃO: ANA DOS ANJOS. CLIQUE PARA AMPLIAR
RESPIRO OFEGANTE. TRAGO NAS MÃOS UMA PEQUENA MALA E UMA AGENDA TININDO DE NOVA. É MEU PRIMEIRO DIA DE AULA. VENHO SUBSTITUIR UMA PROFESSORA QUE TEVE QUE SE AUSENTAR "POR MOTIVO DE FORÇA MAIOR". ENTRO TIMIDAMENTE NA SALA DOS PROFESSORES E SOU ENCARADA POR TODOS. UMA DAS COLEGAS, TENTANDO ME DEIXAR MAIS À VONTADE, PERGUNTA:

- É VOCÊ QUE VEIO SUBSTITUIR A EDITH?

- SIM - RESPONDO NUM FIO DE VOZ.

- FALA FORTE, QUERIDA, CASO CONTRÁRIO VAI SER TRAGADA PELOS ALUNOS - E MORRE DE RIR.

- ELA NEM IMAGINA O QUE A ESPERA, NÃO É MESMO? - E A EQUIPE TODA SE DIVERTE COM A MINHA CARA.

CONVIDADA A ME SENTAR, ACEITO PARA NÃO PARECER ANTIPÁTICA. ELES CONTINUAM A CONVERSAR COMO SE EU NÃO ESTIVESSE ALI. ATÉ QUE, FINALMENTE, TOCA O SINAL. É HORA DE COMEÇAR A AULA. PEGO MEU MATERIAL E PERCEBO QUE ME OLHAM CURIOSOS PARA SABER O QUE TENHO DENTRO DA MALA. ANTES QUE ME PERGUNTEM, ACELERO O PASSO E SIGO PARA A SALA DE AULA. ENTRO E VEJO UM MONTÃO DE OLHINHOS CURIOSOS A ME ANALISAR QUE, EM SEGUIDA, SE VOLTAM PARA A MALETA. EU A COLOCO EM CIMA DA MESA E A ABRO SEM DEIXAR QUE VEJAM O QUE HÁ LÁ DENTRO.

- O QUE TEM AÍ, PROFESSORA?

- EM BREVE VOCÊS SABERÃO.

NO FIM DO DIA, FECHO A MALA, JUNTO MINHAS COISAS E SAIO. NO DIA SEGUINTE, ME COMPORTO DA MESMA MANEIRA, E NO OUTRO E NO NOUTRO... AS AULAS CORREM BEM E SINTO QUE CONQUISTEI A CLASSE, QUE PARTICIPA COM MUITO INTERESSE. OS PROFESSORES JÁ NÃO ME ENCARAM. A MALA, PORÉM, CONTINUA SENDO ALVO DE OLHARES CURIOSOS.

CHEGO À ESCOLA NO MEU ÚLTIMO DIA DE AULA. A TITULAR DA TURMA VOLTARÁ NA SEMANA SEGUINTE. NA SALA DOS PROFESSORES OUÇO A PERGUNTA GUARDADA HÁ TANTOS DIAS:

- AFINAL, O QUE VOCÊ GUARDA DE TÃO MÁGICO DENTRO DESSA MALA QUE CONSEGUIU MODIFICAR A SALA EM TÃO POUCO TEMPO?

- PODEM OLHAR - RESPONDO, ABRINDO O FECHO.

- MAS NÃO TEM NADA AÍ! - COMENTAM.

- O ESSENCIAL É INVISÍVEL AOS OLHOS. AQUI GUARDO O MEU MELHOR.

TODOS FICAM ME OLHANDO. PARECEM ESTAR PENSANDO NO QUE EU DISSE. PEGO MEU MATERIAL, ME DESPEÇO E SAIO.

 

 

 

 

PECHADA

LUIS FERNANDO VERÍSSIMO (NOVAESCOLA@FVC.ORG.BR)
Ilustração: Santiago
ILUSTRAÇÃO: SANTIAGO
O APELIDO FOI INSTANTÂNEO. NO PRIMEIRO DIA DE AULA, O ALUNO NOVO JÁ ESTAVA SENDO CHAMADO DE "GAÚCHO". PORQUE ERA GAÚCHO. RECÉM-CHEGADO DO RIO GRANDE DO SUL, COM UM SOTAQUE CARREGADO.

— AÍ, GAÚCHO!

— FALA, GAÚCHO!

PERGUNTARAM PARA A PROFESSORA POR QUE O GAÚCHO FALAVA DIFERENTE. A PROFESSORA EXPLICOU QUE CADA REGIÃO TINHA SEU IDIOMA, MAS QUE AS DIFERENÇAS NÃO ERAM TÃO GRANDES ASSIM. AFINAL, TODOS FALAVAM PORTUGUÊS. VARIAVA A PRONÚNCIA, MAS A LÍNGUA ERA UMA SÓ. E OS ALUNOS NÃO ACHAVAM FORMIDÁVEL QUE NUM PAÍS DO TAMANHO DO BRASIL TODOS FALASSEM A MESMA LÍNGUA, SÓ COM PEQUENAS VARIAÇÕES?

— MAS O GAÚCHO FALA "TU"! — DISSE O GORDO JORGE, QUE ERA QUEM MAIS IMPLICAVA COM O NOVATO.

— E FALA CERTO — DISSE A PROFESSORA. — PODE-SE DIZER "TU" E PODE-SE DIZER "VOCÊ". OS DOIS ESTÃO CERTOS. OS DOIS SÃO PORTUGUÊS.

O GORDO JORGE FEZ CARA DE QUEM NÃO SE ENTREGARA.

UM DIA O GAÚCHO CHEGOU TARDE NA AULA E EXPLICOU PARA A PROFESSORA O QUE ACONTECERA.

— O PAI ATRAVESSOU A SINALEIRA E PECHOU.

— O QUE?

— O PAI. ATRAVESSOU A SINALEIRA E PECHOU.

A PROFESSORA SORRIU. DEPOIS ACHOU QUE NÃO ERA CASO PARA SORRIR. AFINAL, O PAI DO MENINO ATRAVESSARA UMA SINALEIRA E PECHARA. PODIA ESTAR, NAQUELE MOMENTO, EM ALGUM HOSPITAL. GRAVEMENTE PECHADO. COM PEDAÇOS DE SINALEIRA SENDO RETIRADOS DO SEU CORPO.

— O QUE FOI QUE ELE DISSE, TIA? — QUIS SABER O GORDO JORGE.

— QUE O PAI DELE ATRAVESSOU UMA SINALEIRA E PECHOU.

— E O QUE É ISSO?

— GAÚCHO... QUER DIZER, RODRIGO: EXPLIQUE PARA A CLASSE O QUE ACONTECEU.

— NÓS VINHA...

— NÓS VÍNHAMOS.

— NÓS VÍNHAMOS DE AUTO, O PAI NÃO VIU A SINALEIRA FECHADA, PASSOU NO VERMELHO E DEU UMA PECHADA NOUTRO AUTO.

A PROFESSORA VARREU A CLASSE COM SEU SORRISO. ESTAVA CLARO O QUE ACONTECERA? AO MESMO TEMPO, PROCURAVA UMA TRADUÇÃO PARA O RELATO DO GAÚCHO. NÃO PODIA ADMITIR QUE NÃO O ENTENDERA. NÃO COM O GORDO JORGE RINDO DAQUELE JEITO.

"SINALEIRA", OBVIAMENTE, ERA SINAL, SEMÁFORO. "AUTO" ERA AUTOMÓVEL, CARRO. MAS "PECHAR" O QUE ERA? BATER, CLARO. MAS DE ONDE VIERA AQUELA ESTRANHA PALAVRA? SÓ MUITOS DIAS DEPOIS A PROFESSORA DESCOBRIU QUE "PECHAR" VINHA DO ESPANHOL E QUERIA DIZER BATER COM O PEITO, E ATÉ LÁ TEVE QUE SE ESFORÇAR PARA CONVENCER O GORDO JORGE DE QUE ERA MESMO BRASILEIRO O QUE FALAVA O NOVATO. QUE JÁ GANHARA OUTRO APELIDO: PECHADA.

— AÍ, PECHADA!

— FALA, PECHADA!

 

 

 

 

 

 

 

QUALIDADES DO PROFESSOR

CECÍLIA MEIRELES (NOVAESCOLA@FVC.ORG.BR)
Ilustração: Laurabeatriz
SE HÁ UMA CRIATURA QUE TENHA NECESSIDADE DE FORMAR E MANTER CONSTANTEMENTE FIRME UMA PERSONALIDADE SEGURA E COMPLEXA, ESSA É O PROFESSOR.

DESTINADO A PÔR-SE EM CONTATO COM A INFÂNCIA E A ADOLESCÊNCIA, NAS SUAS MAIS VÁRIAS E INCOERENTES MODALIDADES, TENDO DE COMPREENDER AS INQUIETAÇÕES DA CRIANÇA E DO JOVEM, PARA BEM OS ORIENTAR E SATISFAZER SUA VIDA, DEVE SER TAMBÉM UM CONTÍNUO APERFEIÇOAMENTO, UMA CONCENTRAÇÃO PERMANENTE DE ENERGIAS QUE SIRVAM DE BASE E ASSEGUREM A SUA POSSIBILIDADE, VARIANDO SOBRE SI MESMO, CHEGAR A APREENDER CADA FENÔMENO CIRCUNSTANTE, CONCILIANDO TODOS OS DESACORDOS APARENTES, TODAS AS VARIAÇÕES HUMANAS NESSA VISÃO TOTAL INDISPENSÁVEL AOS EDUCADORES.

É, CERTAMENTE, UMA GRANDE OBRA CHEGAR A CONSOLIDAR-SE NUMA PERSONALIDADE ASSIM. SER AO MESMO TEMPO UM RESULTADO — COMO TODOS SOMOS — DA ÉPOCA, DO MEIO, DA FAMÍLIA, COM CARACTERÍSTICAS PRÓPRIAS, ENÉRGICAS, PESSOAIS, E PODER SER O QUE É CADA ALUNO, DESCER À SUA ALMA, FEITA DE MIL COMPLEXIDADES, TAMBÉM, PARA SE PODER PÔR EM CONTATO COM ELA, E ESTIMULAR-LHE O PODER VITAL E A CAPACIDADE DE EVOLUÇÃO.

E TER O CORAÇÃO PARA SE EMOCIONAR DIANTE DE CADA TEMPERAMENTO.

E TER IMAGINAÇÃO PARA SUGERIR.

E TER CONHECIMENTOS PARA ENRIQUECER OS CAMINHOS TRANSITADOS.

E SABER IR E VIR EM REDOR DESSE MISTÉRIO QUE EXISTE EM CADA CRIATURA, FORNECENDO-LHE CORES LUMINOSAS PARA SE DEFINIR, VIBRATILIDADES ARDENTES PARA SE MANIFESTAR, FORÇA PROFUNDA PARA SE ERGUER ATÉ O MÁXIMO, SEM VACILAÇÕES NEM PERIGOS. SABER SER POETA PARA INSPIRAR. QUANDO A MOCIDADE PROCURA UM RUMO PARA A SUA VIDA, LEVA CONSIGO, NO MAIS ÍNTIMO DO PEITO, UM EXEMPLO GUARDADO, QUE LHE SERVE DE IDEAL.

QUANTAS VEZES, ENTRE ESSE IDEAL E O PROFESSOR, SE ABREM ENORMES PRECIPÍCIOS, DE ONDE SE ORIGINAM OS MAIS TRISTES DESENGANOS E AS DÚVIDAS MAIS DOLOROSAS!

COMO SERIA ADMIRÁVEL SE O PROFESSOR PUDESSE SER TÃO PERFEITO QUE CONSTITUÍSSE, ELE MESMO, O EXEMPLO AMADO DE SEUS ALUNOS!

E, DEPOIS DE TER VIVIDO DIANTE DOS SEUS OLHOS, DIRIGINDO UMA CLASSE, PUDESSE MORAR PARA SEMPRE NA SUA VIDA, ORIENTANDO-A E FORTALECENDO-A COM A INESGOTÁVEL FECUNDIDADE DA SUA RECORDAÇÃO.

TEXTO DE CECÍLIA MEIRELES, EXTRAÍDO DO LIVRO CRÔNICAS DE EDUCAÇÃO 3
ILUSTRADO POR LAURABEATRIZ 

 

 

 

UMA LIÇÃO INESPERADA

JOÃO ANZANELLO CARRASCOZA (NOVAESCOLA@FVC.ORG.BR)
Ilustração: Daisy Sartori
ILUSTRAÇÃO: DAISY SARTORI
NO ÚLTIMO DIA DE FÉRIAS, LILICO NEM DORMIU DIREITO. NÃO VIA A HORA DE VOLTAR À ESCOLA E REVER OS AMIGOS. ACORDOU FELIZ DA VIDA, TOMOU O CAFÉ DA MANHÃ ÀS PRESSAS, PEGOU SUA MOCHILA E FOI AO ENCONTRO DELES. ABRAÇOU-OS À ENTRADA DA ESCOLA, MOSTROU O RELÓGIO QUE GANHARA DE NATAL, CONTOU SOBRE SUA VIAGEM AO LITORAL. DEPOIS OUVIU AS HISTÓRIAS DOS AMIGOS E DIVERTIU-SE COM ELES, O CORAÇÃO LATEJANDO DE ALEGRIA. AOS POUCOS, FOI MATANDO A SAUDADE DAS DESCOBERTAS QUE FAZIA ALI, DAS MENINAS RUIDOSAS, DO AZUL E BRANCO DOS UNIFORMES, DAQUELE BURBURINHO À BEIRA DO PORTÃO. SENTIA-SE COMO UM PEIXE DE VOLTA AO MAR. MAS, QUANDO O SINO ANUNCIOU O INÍCIO DAS AULAS, LILICO DESCOBRIU QUE CAÍRA NUMA CLASSE ONDE NÃO HAVIA NENHUM DE SEUS AMIGOS. ENCONTROU LÁ SÓ GENTE ESTRANHA, QUE O OBSERVAVA DOS PÉS À CABEÇA, EM SILÊNCIO. VIU-SE PERDIDO E O SORRISO QUE ILUMINAVA SEU ROSTO SE APAGOU. ANTES DE COMEÇAR, A PROFESSORA PEDIU QUE CADA ALUNO SE APRESENTASSE. ABORRECIDO, LILICO ESTUDAVA SEUS NOVOS COMPANHEIROS. TINHA UM JAPONÊS DE CABELOS ESPETADOS COM JEITO DE NERD. UMA GAROTA DE OLHOS AZUIS, VINDA DO SUL, PARECEU-LHE FRIA E ARROGANTE. UM MENINO ALTO, QUE QUASE BATEU NO TETO QUANDO SE ERGUEU, DAVA TODA A PINTA DE SER UM BOBO. E A MENINA QUE MORAVA NO SÍTIO? A COITADA COMIA PALAVRAS, OLHAVA-OS ASSUSTADA, IGUAL A UM BICHO-DO-MATO. O MULATO, FILHO DE PESCADOR, FALAVA ARRASTADO, ESTALANDO A LÍNGUA, COM SOTAQUE DE MALANDRO. E HAVIA UNS GAROTOS COM TATUAGENS UMAS MENINAS USANDO ÓCULOS DE LENTES GROSSAS, TODOS ESQUISITOS AOS OLHOS DE LILICO. A PROFESSORA? TÃO DIFERENTE DAS QUE ELE CONHECERA... LOGO QUE SOOU O SINAL PARA O RECREIO, LILICO SAIU A MIL POR HORA, À PROCURA DE SEUS ANTIGOS COLEGAS. SURPREENDEU-SE AO VÊ-LOS EM RODA, ANIMADOS, JUNTO AOS ESTUDANTES QUE HAVIAM CONHECIDO HORAS ANTES. DE VOLTA À SALA DE AULA, A PROFESSORA PASSOU UMA TAREFA EM GRUPO. LILICO CAIU COM O JAPONÊS, A MENINA GAÚCHA, O MULATO E O GRANDALHÃO. COMEÇARAM A CONVERSAR CHEIOS DE CAUTELA, MAS PAULATINAMENTE FORAM SE SOLTANDO, A PONTO DE, AO FIM DO EXERCÍCIO, PARECER QUE SE CONHECIAM HÁ ANOS. LILICO DESCOBRIU QUE O JAPONÊS NÃO ERA NERD, NÃO: ERA ÓTIMO EM MATEMÁTICA, MAS TINHA DIFICULDADE EM PORTUGUÊS. A GAÚCHA, QUE LHE PARECERA TÃO METIDA, ERA GENTIL E O MIRAVA TERNAMENTE COM SEUS LINDOS OLHOS AZUIS. O MULATO ERA UM CAIÇARA RESPONSÁVEL, AJUDAVA O PAI DESDE CRIANÇA E PROMETEU ENSINAR A TODOS OS SEGREDOS DE UMA BOA PESCARIA. O GRANDALHÃO NÃO TINHA NADA DE BOBO. RACIOCINAVA RAPIDAMENTE E, COM AQUELE TAMANHO, SERIA LEGAL JOGAR BASQUETE NO TIME DELE. LILICO DESCOBRIU MAIS. INCLUSIVE QUE O HAVIAM ACHADO MAL-HUMORADO QUANDO ELE SE APRESENTARA, MAS JÁ NÃO PENSAVAM ASSIM. ENTÃO, MIROU A MENINA DO SÍTIO E PENSOU NO QUANTO SERIA BOM CONHECÊ-LA. DEVIA SABER TUDO DE PASSARINHOS. SIM, JUSTAMENTE PORQUE ERAM DIFERENTES HAVIA ENCANTO NAS PESSOAS. SE ELE DESCOBRIRA AQUILO NO PRIMEIRO DIA DE AULA, QUANTAS DESCOBERTAS NÃO HAVERIA DE FAZER NO ANO INTEIRO? E, COMO UM LÁPIS DESLIZANDO NUMA FOLHA DE PAPEL, UM SORRISO SE DESENHOU NOVAMENTE NO ROSTO DE LILICO.
CRÔNICA DE JOÃO ANZANELLO CARRASCOZA, ILUSTRADA POR DAISY SARTORI

 

 

 

PONTA DA LÍNGUA

Ilustração: Clouds
CHEIA DE GRAÇA É A NOSSA LÍNGUA, PORTUGUESA.
VOCÊ NEM PRECISA APRENDER O Á-BÊ-CÊ PARA RIR COM ELA.
DESDE PEQUENO JÁ OUVE DIZER QUE MENTIRA TEM PERNAS CURTAS.
E MENTIRA TEM PERNAS?
E A VERDADE? A VERDADE TEM PERNAS LONGAS?
E QUANDO DÓI A BARRIGA DA PERNA?
OU QUANDO FICAMOS DE ORELHA EM PÉ?
O QUE A BARRIGA TEM A VER COM A PERNA, E ORELHA COM O PÉ?
PRA SER DIVERTIDO, NÃO LEVE NADA AO PÉ DA LETRA!
ATÉ PORQUE LETRA NÃO TEM PÉ. OU TEM?
PÉ-DE-MEIA É O DINHEIRO QUE A GENTE ECONOMIZA.
PÉ-DE-MOLEQUE, DOCE DE AMENDOIM.
DEDO DE PROSA É PAPO RÁPIDO.
DEDO-DURO É TRAIDOR.
PÃO-DURO, PESSOA EGOÍSTA.
E BOCA DA NOITE? E CÉU DA BOCA?
É UMA BRINCADEIRA ATRÁS DA OUTRA!
CABEÇA DE CEBOLA, DENTE DE ALHO, BRAÇO DE MAR.
COM A NOSSA LÍNGUA, A GENTE PODE PEGAR A VIDA PELA MÃO.
PODE ABRIR O CORAÇÃO. PODE FECHAR A TRISTEZA.
A GENTE PODE MORRER DE MEDO E, AO MESMO TEMPO, ESTAR VIVINHO DA SILVA.
PODE FAZER COISAS SEM PÉ NEM CABEÇA.
MAS BRINCAR COM PALAVRAS TAMBÉM É COISA SÉRIA.
BASTA ERRAR O TOM E VOCÊ VAI PARAR NO OLHO DO FURACÃO.
ENTÃO, DIVIRTA-SE. CUIDADO SÓ PARA NÃO MORDER A LÍNGUA PORTUGUESA! 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

PAPAGAIO CONGELADO

RICARDO AZEVEDO (NOVAESCOLA@FVC.ORG.BR)
Ilustração: Heitor Yida
ILUSTRAÇÃO: HEITOR YIDA
UM DIA, UM SUJEITO GANHOU DE PRESENTE UM PAPAGAIO.

O BICHO ERA UMA PRAGA. NÃO DEMOROU MUITO, LOGO SE ESPALHOU PELA CASA.

ATENDIA TELEFONE.

GRITAVA E FALAVA SOZINHO NAS HORAS MAIS INESPERADAS.

DAVA PALPITE NAS CONVERSAS DOS OUTROS.

DISCUTIA FUTEBOL.

FUMAVA CHARUTO.

PEDIA CAFÉ, TOMAVA, CUSPIA, ARREGALAVA OS OLHOS, ESPARRAMAVA SEMENTE DE GIRASSOL E COCÔ POR TODO LADO, GARGALHAVA E AINDA GRITAVA PARA O DONO DE CASA: "Ô SEU DOUTOR, VÊ SE NÃO TORRA FAZ FAVOR!"

UMA NOITE, A FAMÍLIA RECEBEU UMA VISITA PARA JANTAR.

O PAPAGAIO NÃO GOSTOU DA CARA DO VISITANTE E BERROU: "VAI EMBORA, RATAZANA!" E COMEÇOU A FALAR CADA PALAVRÃO CABELUDO QUE DAVA MEDO.

DEPOIS QUE A VISITA FOI EMBORA, O DONO DA CASA FOI ATÉ O POLEIRO. ESTAVA FURIOSO:

— SEU MAL-EDUCADO, SEM-VERGONHA DE UMA FIGA! ESTOU CHEIO! AGORA VOCÊ VAI VER O QUE É BOM PRA TOSSE.

AGARROU O PAPAGAIO PELO CANGOTE E ATIROU DENTRO DA GELADEIRA:

— VAI PASSAR A NOITE AÍ DE CASTIGO!

DEPOIS, FECHOU A PORTA E FOI DORMIR.

NO DIA SEGUINTE, SAIU ATRASADO PARA O TRABALHO E ESQUECEU O COITADO PRESO DENTRO DA GELADEIRA.

SÓ FOI LEMBRAR DO BICHO À NOITE, QUANDO VOLTOU PARA CASA.

FOI CORRENDO ABRIR A GELADEIRA.

O PAPAGAIO SAIU TRÊMULO E CABISBAIXO, COM CARA ARREPENDIDA, CHEIO DE PÓ GELADO NA CABEÇA.

FICOU DE JOELHOS.

BOTOU AS DUAS ASAS NA CABEÇA.

REZOU.

DISSE PELO AMOR DE DEUS.

RECONHECEU QUE ESTAVA ERRADO.

PEDIU PERDÃO.

DISSE QUE NUNCA MAIS IA FAZER AQUILO.

JUROU QUE NUNCA MAIS IA FAZER COISA ERRADA, QUE NUNCA MAIS IA ATENDER TELEFONE E INTERROMPER CONVERSA, NEM XINGAR NENHUMA VISITA.

JUROU QUE NUNCA MAIS IA DIZER PALAVRÃO NEM "VAI EMBORA, RATAZANA".

DEPOIS, EXAMINANDO O HOMEM COM OS OLHOS ARREGALADOS, ESPIOU DENTRO DA GELADEIRA E PERGUNTOU:

— QUERIA SABER SÓ UMA COISA: O QUE É QUE AQUELE FRANGUINHO PELADO, DEITADO ALI NO PRATO, FEZ?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O DIA EM QUE A CAÇA CONSOLOU O CAÇADOR NO PACAEMBU


Ilustração: Andrés Sandoval
DOIS ALVINEGROS, SANTOS E BOTAFOGO, FAZIAM OS GRANDES JOGOS DOS ANOS 60. PELÉ X GARRINCHA, FORA OUTROS GIGANTES DOS DOIS TIMAÇOS.

NUM DESSES JOGOS, EM SÃO PAULO, OS CARIOCAS FIZERAM UMA EXIBIÇÃO INESQUECÍVEL E, ESTRANHAMENTE, POUCO BADALADA NOS EMBATES ENTRE OS DOIS MELHORES TIMES DO PAÍS NAQUELA ÉPOCA. ALIÁS, SEMPRE QUE SE FAZEM REFERÊNCIAS AOS JOGOS ENTRE BOTAFOGO E SANTOS DAQUELES TEMPOS, SÓ SÃO LEMBRADAS AS VITÓRIAS SANTISTAS, AS GOLEADAS DE PELÉ & CIA. POIS O PACAEMBU ESTAVA LOTADO PARA VER MAIS UMA.

PELÉ E MANÉ ESTAVAM EM CAMPO, MAS O DIABO ESTAVA ERA NO CORPO QUE VESTIA A CAMISA SETE, NÃO A DEZ. O LATERAL-ESQUERDO DALMO, DO SANTOS, VIVEU UMA TARDE DE TERROR. GARRINCHA PEGAVA A BOLA E, ANDANDO, LEVAVA DALMO ATÉ DENTRO DA GRANDE ÁREA, ONDE O ZAGUEIRO NÃO PODIA FAZER FALTA.

O PACAEMBU NÃO ACREDITAVA NO QUE VIA: UM PONTA ANDAR DESDE A INTERMEDIÁRIA ATÉ A ÁREA SEM QUE O LATERAL TENTASSE TIRAR A BOLA, TEMEROSO DO DRIBLE DESMORALIZANTE. ATÉ QUE DALMO PERCEBEU QUE TINHA VIRADO MOTIVO DE CHACOTA DOS TORCEDORES, MUITOS DOS QUAIS NEM SANTISTAS ERAM, MAS QUE IAM AO CAMPO NA CERTEZA DO ESPETÁCULO.

E DALMO RESOLVEU BATER ANTES DE CHEGAR À GRANDE ÁREA. BATEU UMA VEZ, GARRINCHA CAIU, O ÁRBITRO MARCOU A FALTA E REPREENDEU O PAULISTA. BATEU OUTRA VEZ, GARRINCHA VOLTOU AO CHÃO, O ÁRBITRO MARCOU A FALTA E AMEAÇOU DALMO DE EXPULSÃO, PORQUE NAQUELE TEMPO O CARTÃO AMARELO NÃO EXISTIA.

A TERCEIRA FALTA DE DALMO FOI A MAIS VIOLENTA, COMO SE ELE ESTIVESSE PENSANDO: "ARREBENTO ESSA PESTE, SOU EXPULSO, MAS ELE NÃO JOGA MAIS".

PENSADO E FEITO. ENQUANTO O GÊNIO DAS PERNAS TORTAS ESTAVA ESTIRADO NO BICO DIREITO DA ÁREA DOS PORTÕES PRINCIPAIS DO PACAEMBU, O ÁRBITRO DETERMINAVA A EXPULSÃO DE DALMO, CERCADO POR BOTAFOGUENSES JUSTAMENTE IRADOS COM SEU GESTO.

EIS QUE, COMO UM ACROBATA, GARRINCHA LEVANTA-SE, AFASTA SEUS COMPANHEIROS, BOTA O BRAÇO ESQUERDO NO OMBRO DE DALMO E O ACOMPANHA ATÉ A DESCIDA DA ESCADA PARA O VESTIÁRIO, QUE, ENTÃO, FICAVA DAQUELE LADO.

SAÍRAM CONVERSANDO, COMO SE GARRINCHA JUSTIFICASSE A ATITUDE, ENTENDESSE QUE, PARA PARÁ-LO, NÃO HAVIA MESMO OUTRO JEITO.

O BOTAFOGO GANHOU DE 3 A 0 E SAIU APLAUDIDO DO ESTÁDIO. TINHA VISTO UMA AUTÊNTICA EXIBIÇÃO DO CARLITOS DO FUTEBOL, DIGNA MESMO DE CHARLES CHAPLIN, DIVERTIDA, ANÁRQUICA, HUMANA, SENSÍVEL, SOLIDÁRIA.

CRÔNICA DO JORNALISTA JUCA KFOURI
PUBLICADA NA REVISTA LANCE A MAIS (EM 9/9/2000),
ILUSTRADA POR ANDRÉS SANDOVAL 

 

 

 

CRÔNICA PARA DONA NICOTA

TATIANA BELINKY (NOVAESCOLA@FVC.ORG.BR)
Ilustração: Cris e Jean
ILUSTRAÇÃO: CRIS E JEAN
FOI NOS ANOS FINAIS DA DÉCADA DE 40. (HÁ TANTO TEMPO!) MEU PRIMOGÊNITO RICARDO COMPLETARA 6 ANOS DE IDADE, E RESOLVEMOS MATRICULÁ-LO NO PRIMEIRO ANO PRIMÁRIO DA ESCOLA AMERICANA, DO JÁ ENTÃO TRADICIONAL MACKENZIE COLLEGE, QUE FICAVA A TRÊS QUADRAS DA NOSSA CASA. E RICARDINHO, QUE ERA UMA CRIANÇA TÍMIDA E UM TANTO ENSIMESMADA, NÃO GOSTOU NEM UM POUCO DA EXPERIÊNCIA DE FICAR "ABANDONADO" NUM LUGAR ESTRANHO, NO MEIO DE GENTE DESCONHECIDA — UMA COISA PARA ELE MUITO ASSUSTADORA. E NÃO HOUVE JEITO DE FAZÊ- LO ACEITAR TÃO INSÓLITA SITUAÇÃO. ELE SE RECUSAVA ATÉ MESMO A ENTRAR NA SALA: FICAVA NA PORTA, "FINCAVA O PÉ", SEM CHORAR MAS TAMBÉM SEM CEDER... EU JÁ ESTAVA A PONTO DE DESISTIR DA EMPREITADA, QUANDO A PROFESSORA DA CLASSE, DONA NICOTA, SE LEVANTOU E VEIO FALAR CONOSCO. E TODO O JEITO DELA, A MANEIRA COMO ELA OLHOU PARA O RICARDINHO, O TIMBRE E O TOM DA SUA VOZ, A EXPRESSÃO DO SEU ROSTO E ATÉ A SUA FIGURINHA BAIXINHA, MEIO RECHONCHUDA, NÃO JOVEM DEMAIS, MUITO SIMPLES E DESPOJADA, CAUSARAM IMEDIATAMENTE UMA SENSÍVEL IMPRESSÃO NO MENINO. A TENSÃO SUMIU DO SEU ROSTINHO, SEU CORPO RELAXOU, E - ORA VEJAM! - ELE RESPONDEU COM UM SORRISO AO SORRISO DA DONA NICOTA!

- VEM FICAR AQUI COMIGO - ELA DISSE. - VOCÊ VAI GOSTAR. - E ACRESCENTOU, PARA MINHA SURPRESA, - EU MESMA VOU LEVAR VOCÊ PARA A SUA CASA. E AMANHÃ CEDO, EU MESMA VOU BUSCAR VOCÊ, PARA VIR À ESCOLA COMIGO.

EU NÃO SABIA COMO AGRADECER. E NEM FOI PRECISO — O QUE DONA NICOTA DISSE, ELA CUMPRIU. E DURANTE VÁRIOS DIAS, ATÉ SEMANAS, ELA PASSOU PELA NOSSA CASA, POUCO ANTES DO INÍCIO DAS AULAS, E LEVOU O RICARDINHO PELA MÃO, A PÉ, ATÉ A ESCOLA E A SUA SALA. E O TROUXE DE VOLTA, DA MESMA MANEIRA. E ATÉ QUANDO, CERTO DIA, O MENINO ESTAVA ADOENTADO E NÃO PÔDE IR À ESCOLA, ELA VOLTOU PARA LHE DAR UMA "AULA PARTICULAR", EM CASA — PARA ELE NÃO SE ATRASAR NO PROGRAMA. TUDO ISSO NA MAIOR SIMPLICIDADE, COMO SE FOSSE A COISA MAIS NATURAL DO MUNDO...

O RICARDINHO ADORAVA A DONA NICOTA - E NÃO ERA PARA MENOS. DONA NICOTA ERA A MAIS PERFEITA E LINDA ENCARNAÇÃO DA "PROFESSORA PRIMÁRIA" IDEAL - A MAIS NOBRE E FUNDAMENTAL DAS PROFISSÕES: A DE SER A PRIMEIRA A PREPARAR UMA CRIANÇA PEQUENA NAS SUAS PRIMEIRAS INCURSÕES NA VIDA REAL - COM COMPETÊNCIA, DEDICAÇÃO, COMPREENSÃO, PACIÊNCIA E CARINHO. E A CONSCIÊNCIA PLENA DE ESTAR DANDO À CRIANÇA UMA VERDADEIRA BASE PARA O FUTURO CIDADÃO.
POR QUE ESTOU CONTANDO TUDO ISSO A VOCÊS, HOJE? PORQUE, NO DIA DO PROFESSOR, EU SENTI QUE NÃO PODERIA PRESTAR MAIOR HOMENAGEM A TODOS OS "MESTRES-ESCOLAS" DO BRASIL DO QUE INCLUÍ-LOS NESTA "CRÔNICA-TRIBUTO" A DONA NICOTA, EXEMPLO E PARADIGMA DE UMA MODESTA E MARAVILHOSA PROFESSORA "MONTESSORIANA" E UM GRANDE SER HUMANO.

RICARDO SAIU DE SOB A ASA DE DONA NICOTA LENDO E ESCREVENDO. E HOJE, JORNALISTA, TRADUTOR E ESCRITOR, ESSE AVÔ DE TRÊS NETOS CONTINUA SE LEMBRANDO DE DONA NICOTA, COM CARINHO E GRATIDÃO.

ESSA DONA NICOTA QUE A ESTAS HORAS DEVE ESTAR DANDO AULAS MONTESSORIANAS AOS ANJINHOS DO CÉU.
CRÔNICA DE TATIANA BELINKY, ILUSTRADA POR CRIS E JEAN



OS CRAQUES DO FUTURO

http://atividadesparaprofessores.com.br/wp-content/uploads/2014/05/cascao-cebolinha-futebol-desenhos.png
   TODO PAI DE CLASSE MÉDIA TEM UM DE DOIS SONHOS: OU QUER QUE O FILHO SEJA DOUTOR, OU JOGADOR DE FUTEBOL. O PRIMEIRO SONHO É MAIS ANTIGO, E VEM DA ÉPOCA EM QUE UM DIPLOMA ERA TUDO, MAS HOJE, COM TANTO PROFISSIONAL DESEMPREGADO E COM OS JOGADORES DE FUTEBOL GANHANDO FORTUNAS, O SONHO MUDOU. DE QUALQUER MODO, SER JOGADOR DE FUTEBOL EXIGE ESFORÇO. PORQUE JÁ SE FOI A ÉPOCA EM QUE UM GAROTO SE TORNAVA CRAQUE NAS PELADAS DE RUA; AS RUAS HOJE SÃO PERIGOSAS. ALÉM DISTO, FUTEBOL AGORA AGORA SE APRENDE- NAS ESCOLINHAS. (POR ENQUANTO É ESCOLINHA. LOGO SERÁ FACULDADE, MESTRADO,DOUTORADO. JÁ IMAGINARAM UM PHD EM FUTEBOL TEORIZANDO ANTES DE FAZER UM PASSE? CHEGAREMOS LÁ.)
   É COM A MAIOR EMOÇÃO QUE UM PAI MATRICULA SEU FILHO NA ESCOLINHA DE FUTEBOL. E É COM EMOÇÃO AINDA MAIOR QUE ELE AGUARDA O RESULTADO DA PRIMEIRA AULA. AGARRA O PROFESSOR ANSIOSO:
   _ENTÃO? JÁ POSSO FAZER UM CONTRATO COM OS ITALIANOS? [ ...] 
                                                 SCILIAR.MOACYR. UM PAÍS CHAMADO INFÂNCIA. SÃO PAULO: ÁTICA, 2002. V. 18. P. 63-65. ( COLEÇÃO PARA GOSTAR DE LER.) ( FRAGMENTO)


Viva a Paz!
Tatiana Belinky (novaescola@fvc.org.br)
Viva a paz! Ilustração: Rogério Fernandes
Dois gatinhos assanhados
se atracaram, enfezados.
A dona se irritou
e a vassoura agarrou!

E apesar do frio, na hora,
os varreu porta afora,
bem no meio do inverno,
com um frio "do inferno"!

Os gatinhos, assustados,
se encolheram, já gelados,
junto à porta, no jardim,
aguardando o triste fim!

De terror acovardados,
os dois gatinhos, coitados,
não puderam nem miar,
lamentando tanto azar!

Sem ouvir nenhum miado,
a dona, por seu lado,
dos gatinhos teve dó,
e a porta abriu de uma vez só!

Mesmo estando tão gelados,
os dois gatinhos arrepiados
Zás! Bem junto do fogão
surgem, sem reclamação!

E a dona comentou:
tanto faz quem começou!
Uma encrenca boba assim
bom é que tenha logo um fim!

E ela acrescentou, então,
não querem brigar mais, não?
E os gatinhos, enroscados,
esqueceram da briga, aliviados.

Confortados, no quentinho,
com sossego e com carinho,
dormem bem, bichos queridos,
já da briga esquecidos.














Dona Cotinha, Tom e Gato Joca

Dona Cotinha, Tom e gato Joca. Ilustração: Ionit Zilberman

Em frente à minha casa tem outra casa, pequena, de madeira, azul com janelas brancas. Está no fim de um terreno enorme com muitas árvores. Para mim aquilo é o que chamam de floresta. Tom diz que é um quintal. Ali mora dona Cotinha, uma velhinha que tem cabelos lilás e dirige um Fusquinha vermelho. Esse passou a ser meu esconderijo. Dona Cotinha sempre aparece com um prato de comida. Diz:

- Vem, gatinho. Olha só o que eu trouxe para você.

Sou premiado com sardinha fresca, atum, macarrão. Tenho engordado além da conta. Dia desses estava tomando sol e ouvi o Tom me chamar. O danado sentiu meu cheiro e descobriu meu segredo. Ele estava no portão quando chegou dona Cotinha, no seu Fusquinha.

- Bom dia, menino - disse ela. Já que está em frente à minha casa, faça uma gentileza e abra o portão.

Tom obedeceu. Dona Cotinha afagou minha cabeça e perguntou:

- Este gatinho é seu?

- Sim, senhora.

- Ele é muito educado.

- Obrigado - disse eu, na minha voz de gato.

- No primeiro dia que o vi por aqui, ele entrou na casa e cheirou tudo. Agora, sempre deixo uma comidinha para ele!

- Ah! Mas o Joca não come comida de gente, não, senhora. Só come ração - disse o Tom.

- Come, sim, meu filho. E come de tudo.

Dona Cotinha acabava de denunciar minha gula e o aumento de peso. Continuou:

- Passe aqui no fim da tarde. Faço um bolo de fubá com cobertura de chocolate que é de dar água na boca.

Com água na boca fiquei eu. Naquela tarde voltamos à casa de dona Cotinha. Ela foi logo mostrando pro Tom uma coleção de carrinhos antigos. Era do filho dela, que morreu bem pequeno. Depois nos levou para uma sala repleta de livros. Tom ficou de boca aberta e perguntou:

- A senhora já leu todos esses livros?

- Praticamente todos. Ler foi minha diversão, meu bom vício. Infelizmente meus olhos não ajudam mais. Essa pilha que você está vendo aqui ainda nem foi tocada.

Tom começou a ler em voz alta, e sua voz encheu a sala de seres fantásticos. O tempo parou.

Desse dia em diante, à tardinha, eu e Tom tínhamos uma missão. Abrir os livros de dona Cotinha e deixar os personagens passearem pela casa mágica, no meio da floresta da cidade de pedra.


   

 

 

Acontece para quem acredita


Ilustração: Joana Lira
Ilustração: Joana Lira
Era um jovem pescador muito pobre, que vivia sozinho numa praia distante. Tinha um pequeno barco em que saía à noite para pescar e, no dia seguinte, vendia os peixes no povoado mais próximo. Certa vez uma onda enorme tragou o barquinho, mas, na manhã seguinte, acordou em sua cabana miserável e viu que tudo era como sempre tinha sido. Veio à sua lembrança uma bela moça que o socorrera em meio às águas e o carregara para seu palácio no fundo do mar. Nesse momento, riu de si mesmo e disse alto:

- Você sonhou com a Mãe D’Água. Foi só.

Levantou-se para ir tomar água, sua garganta queimava de sede. Quando ergueu a caneca para beber viu um anel brilhando em seu dedo.

- Que é isso?

De repente se lembrou de uma cerimônia em que ele recebera aquele anel, no palácio no fundo do mar.

Uma coisa dessas não podia ter acontecido. Mas o anel continuava um mistério.

Em seguida sentiu uma dúvida terrível: e se estivesse morto?

O jeito era se olhar no espelho, pois ouvira contar que fantasmas não refletem imagem. Claro que era tão pobre que nem tinha espelho em casa.

E se quando fosse vender o peixe no povoado, se olhasse no espelho da barbearia?

Será que tinha pescado alguma coisa? Só se lembrava daquela onda gigante que engolira seu barco. Correu até a praia e não viu o barco. Quem estava lá era a linda moça que o salvara na hora do naufrágio.

Ela sorriu e disse:

- Você não quis ficar na minha casa, vim morar na sua, afinal agora somos casados. Disse isso e estendeu a mão para ele.

Ele viu então que ela usava um anel igual ao que brilhava em seu dedo.

Respondeu:

- Venha.

Caminharam abraçados e, ao chegarem ao lugar onde ficava a cabana, ela não existia mais. Lá, agora, erguia-se um palácio e havia gente entrando e saindo.

A moça disse:

- É o meu povo das águas.

De repente, ele notou que estava vestido com roupas luxuosas em vez dos trapos de antes.

Sem dúvida a Mãe D’Água o escolhera para marido e não havia força humana que pudesse mudar isso.

Viveram felizes por algum tempo. Mas, se ele não tinha gostado de morar no palácio no fundo do mar, ela começou a se cansar de viver em terra firme.

Ficava horas diante do mar rodeada por seu povo das águas. O palácio permanecia abandonado. Ninguém cuidava de nada, tudo era deixado na maior desordem.

Um dia ele pronunciou as palavras fatais que ela o proibira de dizer em qualquer circunstância.

- Arrenego o povo do mar!

Era o que todos esperavam para voltar às profundezas do oceano. Suas palavras valeram como sinal para a debandada.

A moça e todos os serviçais foram cantando para dentro do mar e sumiram nas águas.

O pescador olhou para si mesmo e viu que suas roupas de luxo também tinham sumido. Estava outra vez vestido de trapos. Quando voltou para casa, só encontrou o casebre de antes, não havia nem rastro de algum palácio.

Ao entardecer, sentiu saudades da Mãe D’Água e foi até a beira da praia. Lá estava seu velho barquinho, antes desaparecido. O pescador entrou nele e tomou o rumo do quebra-mar.

De repente uma grande onda o envolveu e seu pensamento foi:

- Será que tudo vai acontecer de novo?

A gata apaixonada

Ilustração: Andrea Ebert
Ilustração: Andrea Ebert
Quando perguntam como é que eu consegui sair com a Carla, eu respondo que foi por causa do Aldemir Martins. O pintor famoso.

Eu estava, tranqüilo, estudando. Juro. Lá pelas 3 da tarde o telefone tocou. Era ela, a vizinha da casa 3.

A mãe morreu há uns quatro anos. O pai é superciumento, não a deixa satir de casa nunca.

- Oi, Rodrigo... Você tem um gato grande, malhado?

- Tenho. O nome dele é Sorvete.

- Sorvete?
- Quando a gente encosta a mão, ele se derrete todo.

- Ele briga com a minha gata, a Tati. Já aconteceu várias vezes. Acho que é ciúme.

- De outro gato?

- Não. De um quadro. Uma pintura. Do Aldemir Martins.

Dez minutos depois eu estava na sala da casa dela. Só nós dois.

- Você vai ver - ela disse.

- É sempre na mesma hora. Já ouviu falar do Aldemir Martins?

- Já. É um pintor famoso pra caramba. Mora aqui em São Paulo.

- Morava. Morreu há pouco tempo. Minha mãe era apaixonada pela pintura dele. Ele ilustrava livros, revistas, jornais... Pintava cangaceiros, galos, passarinhos, peixes...

- Tô sabendo. Desenhava até rótulos de maionese, de vinho...

- Minha mãe comprava tudo que podia. A gente comia em pratos desenhados por ele, tinha lençóis, tapetes, cortina de banheiro...

Carla me levou pra um canto da sala. Em cima de uma imitação de lareira, havia uma tela do Aldemir Martins, pequena, com o desenho de um gato. Um gato gordo, vermelho e azul, um focinho enorme, mostrando as garras, sedutor, os olhos verdes calmos, hipnóticos.

- Minha mãe adorava esse quadro.

Então ela me puxou pra trás de uma cortina pesada, que cobria a vidraça que dava pro jardim.

Tati entrou na sala. Pulou pro beiral da falsa lareira e parou em frente ao quadro, olhando pro gato pintado. Ficamos assim uns 20 minutos, escondidos, calados. Até que ele apareceu. O velho Sorvete. O gato mais descolado do pedaço. Veio gingando, passou entre os móveis, parou na frente da lareira, olhou pro alto e não gostou nada do que viu.

Carla segurou no meu braço.

Sorvete pulou pro beiral.

Briga de gato é mais rápido que videogame. Tati pulou, atravessou uma janela aberta e fugiu pro jardim, com o Sorvete atrás.

- Minha mãe dizia que um artista é capaz de recriar a vida. Se Deus existe, com certeza é um artista. Mas acho que você vai ter de trancar o Sorvete em casa, Rodrigo. Não gostei daquilo.

- Não, Carla. A gente encontra outro jeito. Pra mim as pessoas, os bichos, qualquer coisa que se mexa... têm de ter liberdade. Têm de ter uma janela aberta.

- Mas o Sorvete é meio selvagem...

- Isso. É assim que eu gosto dele. Eu também sou meio selvagem. Sabe o que eu faço? Eu como o tomate inteiro. Eu não fico esperando a minha mãe partir e colocar na salada!

Ela riu. Não sei de onde eu tirei essa história do tomate. Aí me empolguei, e ia dar mais exemplos de como eu era selvagem, mas a cortina se abriu de repente e o pai dela apareceu.

O cara ficou nervoso, quase chamou a polícia, mas depois a gente explicou, ele se arrependeu e acabou até deixando a filha sair comigo.

Eu e a Carla estamos namorando. Juro.


Um problema difícil
Pedro Bandeira (novaescola@fvc.org.br)
Um problema difícil. Ilustração: Pedro Melo
Era um problema dos grandes. A turminha reuniu-se para discuti-lo e Xexéu voltou para casa preocupado. Por mais que pensasse, não atinava com uma solução. Afinal, o que poderia ele fazer para resolver aquilo? Era apenas um menino!

Xexéu decidiu falar com o pai e explicar direitinho o que estava acontecendo. O pai ouviu calado, muito sério, compreendendo a gravidade da questão. Depois que o garoto saiu da sala, o pai pensou um longo tempo. Era mesmo preciso enfrentar o problema. Não estava em suas mãos, porém, resolver um caso tão difícil.
Procurou o guarda do quarteirão, um sujeito muito amigo que já era conhecido de todos e costumava sempre dar uma paradinha para aceitar um cafezinho oferecido por algum dos moradores.
O guarda ouviu com a maior das atenções. Correu depois para a delegacia e expôs ao delegado tudo o que estava acontecendo.
O delegado balançou a cabeça, concordando. Sim, alguma coisa precisava ser feita, e logo! Na mesma hora, o delegado passou a mão no telefone e ligou para um vereador, que costumava sensibilizar-se com os problemas da comunidade.

Do outro lado da linha, o vereador ouviu sem interromper um só instante. Foi para a prefeitura e pediu uma audiência ao prefeito. Contou tudo, tintim por tintim. O prefeito ouviu todos os tintins e foi procurar um deputado estadual do mesmo partido para contar o que havia.

O deputado estadual não era desses políticos que só se lembram dos problemas da comunidade na hora de pedir votos. Ligou para um deputado federal, pedindo uma providência urgente. O deputado federal ligou para o governador do estado, que interrompeu uma conferência para ouvi-lo.

O problema era mesmo grave, e o governador voou até Brasília para pedir uma audiência ao ministro.

O ministro ouviu tudinho e, como já tinha reunião marcada com o presidente, aproveitou e relatou-lhe o problema.

O presidente compreendeu a gravidade da situação e convocou uma reunião ministerial. O assunto foi debatido e, depois de ouvir todos os argumentos, o presidente baixou um decreto para resolver a questão de uma vez por todas.

Aliviado, o ministro procurou o governador e contou-lhe a solução. O governador então ligou para o deputado federal, que ficou muito satisfeito. Falou com o deputado estadual, que, na mesma hora, contou tudo para o prefeito. O prefeito mandou chamar o vereador e mostrou-lhe que a solução já tinha sido encontrada.

O vereador foi até a delegacia e disse a providência ao delegado. O delegado, contente com aquilo, chamou o guarda e expôs a solução do problema. O guarda, na mesma hora, voltou para a casa do pai do Xexéu e, depois de aceitar um café, relatou-lhe satisfeito que o problema estava resolvido.

O pai do Xexéu ficou alegríssimo e chamou o filho.

Depois de ouvir tudo, o menino arregalou os olhos:

- Aquele problema? Ora, papai, a gente já resolveu há muito tempo!

A menina e o sapo

Marcia Paganini Cavéquia (novaescola@fvc.org.br)
Ilustração: Renato Ventura
Ilustração: Renato Ventura. Clique para ampliar

Nina, menina airosa, formosa como ela só.
Bonito era ver Nina correr.
Ora corria rápido, feito tufão, ora devagar, parecendo brisa.

Nina corria pelo jardim.
Nina caía no gramado.
Nina fazia folia. E ria.

À noite, cansada das travessuras do dia, a menina dormia.

Certa vez, enquanto passeava pelo jardim, Nina viu um sapo.
Sapo também viu Nina.
"Será que, se Nina beijar o sapo, sapo vira príncipe?"
Nina não sabia, mas ficava imaginando como isso seria.

Nina beijou o sapo.
Sapo continuou sapo.
Não virou príncipe.
Mas se apaixonou por Nina.

Agora, onde Nina está, lá se vê o sapo apaixonado suspirando pela menina.

Na cabeça do sapo, Nina é uma princesa-sapa, transformada em menina por uma terrível feiticeira.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A Origem das Revespécies

Maria Amália Camargo (novaescola@fvc.org.br)
Ilustração: Renato Faccini
Ilustração: Renato Faccini
Você já deve ter quebrado muito a cabeça pra responder aquela velha pergunta sobre o ovo e a galinha... Ora, convenhamos, desde que os cientistas anunciaram o parentesco entre a dita cuja e os dinossauros, não é preciso ser nenhum Charles Darwin pra matar essa charada...

Por um capricho da natureza, ficou decidido que os dinossauros pulariam de grandalhões para a categoria peso-pena, passariam a acordar com as galinhas e seriam bichos muito bons de bico. Daí, foi só uma tiranossauro botar um ovo com um pintinho dentro, para dar início à era das galináceas no planeta. Pronto, o ovo veio primeiro!

E já que estamos falando sobre as transformações no reino animal, é bom lembrar que a evolução não é privilégio apenas das cocoriquentas. Tempos depois de um cavalo amarelo-malhado ter tomado chá de trepadeira e ficado com as folhas entaladas na garganta, transformou -se numa girafa. Quando um camundongo gigante cansou de levar seus filhos a tiracolo e amarrou uma bolsa na barriga, virou um canguru. Já a gelatina, que teve a sorte de ser resgatada do mar Morto por um salva-vidas, ah, virou uma água- viva!

E os reveses nas espécies não param por aí. Tem exemplo de revespécie pra dar e vender. Veja só:

Quem já era devagar quase parando virou preguiça.
Quem tinha samba no pé, uma cuíca.

Virou solitária quem vivia jogada às traças.
Um tremendo furão, quem nunca dava o ar da graça.

Quem era bicho-papão ficou barrigudo.
Quem era cheio de pneuzinhos, borrachudo.

Quem não conseguiu pegar jacaré virou mergulhão.
Quem era nervosinho pacas, um zangão!

Quem gostava de madeira virou bicho-carpinteiro.
Quem dirigia mal pra burro, barbeiro!

Quem não comprava no atacado, virou varejeira.
Quem lavava roupa suja em casa, lavadeira.

Virou quero-quero quem era pidão.
E serelepe, um mexilhão.

Virou maria-fedida quem vivia cheia de craca.
Quem não entrava em barca furada, uma fragata.

O calombo na cachola virou galo.
E quem vivia enrabichado, namorado.

Virou beija-flor quem namorou a rosa no quintal.
Quem pisou na concha acústica, um coral.

Virou truta aquele camarada, grande amigo.
Quem soltava fogo pelas ventas, maçarico.

Virou centopeia o cheio de dedos.
Mas quem vivia pregado continuou percevejo!
Aprendizagem
Ilustração: Eva Uviedo
- Mãe, cabelo demora quanto tempo pra crescer?
- Hã?
- Se eu cortar meu cabelo hoje, quando é que ele vai crescer de novo?
- Cabelo está sempre crescendo, Beatriz. É que nem unha.
A comparação deixa a menina meio confusa. Ela não está preocupada com unhas.
- Todo dia, mãe?
- É, só que a gente não repara.
- Por quê?
- Porque as pessoas têm mais o que fazer, não acha?
A menina não sabe se essa é uma pergunta do tipo que precisa ser respondida ou é daquelas que a gente ouve e pronto. Prefere não responder.
- Você é muito ocupada, não é, mãe?
- Hã?
- Nada, não.
A mãe termina de passar a roupa e vai guardando tudo no armário.
Enquanto isso, Beatriz corre até o quartinho de costura, pega a fita métrica e mede novamente o cabelo da boneca. Ela tinha cortado aquele cabelo com todo o cuidado do mundo, pra ficar parecido com o da mãe, mas a verdade é que ficou meio torto.
"Nada, não cresceu nada", ela conclui, guardando a fita. E já tem uma semana!
Depois volta para onde está a mãe, que agora lustra os móveis.
- Mãe, existe alguma doença que faz o cabelo da gente não crescer?
- Mas de novo essa conversa de cabelo! Não tem outra coisa pra pensar não, criatura?
Sobre essa pergunta não há dúvida: é do tipo que você não deve responder.
A mãe continua trabalhando. Precisa se apressar. Dali a pouco a patroa chega da rua e o almoço nem está pronto ainda.
- Mãe!
- O que foi?
- É que eu estava aqui pensando.
- Pensando o quê?
Beatriz não responde. Espera um pouco, tentando achar as palavras certas.
- Vai, fala logo.
- Quando a gente faz uma coisa, sabe, e não dá mais para voltar atrás, entendeu?
- Não, não entendi.
Ela abaixa a cabeça, dá um tempinho e resolve arriscar:
- Então, se você não entendeu, posso continuar perguntando sobre cabelo?
- Ai, meu Deus!
Beatriz deixa a mãe trabalhando e vai procurar de novo sua boneca.
Pega a boneca no colo e diz no ouvido dela:
- Não liga, não. Cabelo de boneca é assim mesmo, cresce devagar, viu?
E com um carinho:
- Foi minha mãe que me ensinou.

 

 

 

 

Dona Licinha

Ilustração: Carlo Giovani
A senhora não me conhece. Faz tanto tempo e me lembro de detalhes do seu jeito, sua voz, seu penteado e roupas... A senhora ensinava na 3a série B e eu era aluna da 3ª série C no Grupo Escolar do Tatuapé... Passava no corredor fazendo figa para mudar de classe, pra minha professora viajar e nunca mais voltar, pra diretora implicar e me mandar pra 3a B... Nunca tive tanta inveja na minha vida como tive das crianças da série B...

Lembro que na sua sala se ouviam risadas quase o tempo todo. Maior gostosura! De vez em quando, um enorme silêncio quebrado por uma voz suave...era hora de contar histórias. Suspirando, eu grudava na janela e escutava o que podia... Também muitos piques e hurras, brincadeiras correndo solto. Esconde-esconde, telefone sem fio, campeonato de Geografia. Tanto fazia a aprontação inventada. Importava era sentir a redonda contenteza dos alunos.

A sua sala era colorida com desenhos das crianças, um painel com recortes de revistas e jornais, figurinhas bailando em fios pendurados, mapas e fotos... Uma lindeza rodopiante mudada toda semana! Vi pela janela seus alunos fantasiados, pintados, emperucados, representando cenas da História do Brasil! Maior maravilhamento! Demorei, entendi. Quem nunca entendeu foi a minha professora... Seu segredo era ensinar brincando. Na descoberta! Na contenteza!

Nunca ouvi berros, um "Cala boca", "Aqui quem manda sou eu" e outras mansidões que a minha professora dizia sem cansar. Não escutei ameaças de provas de sopetão, castigos, dobro da lição de casa, chamar a diretora, com que a minha professora me aterrorizava o tempo todo...

Dona Licinha, eu quis tanto ser sua aluna quando fiz a 3a série. Não fui... Hoje, tanto tempo depois, sou professora. Também duma 3a série. Agora sou sua colega... Só não esqueço que queria estar na sua classe, seguir suas aulas risonhas, sem cobranças, sem chateações, sem forçar barras, sem fazer engolir o desinteressante. Numa sala colorida, iluminada, bailante. Também quero ser uma professora assim. Do seu jeito abraçante.

Hoje, vi uma garotinha me espiando pela janela. Arrepiei. Senti que estava chegando num jeito legal de estar numa sala de aula... Por isso resolvi escrever para a senhora. Vontadona engolida por décadas. Tinha que dizer que continuo querendo muito ser aluna da Dona Licinha. Agora, aluna de como ser professora. Fazendo meus alunos viverem surpresas inventivas.

Um abraço apertado,

cheinho de gostosuras, da

Ciça

 

 

 

 

 

E vem o Sol

João Anzanello Carrascoza (novaescola@fvc.org.br)
Ilustração: Odilon Moraes
Ilustração: Odilon Moraes
Tinham acabado de se mudar para aquela cidade. Passaram o primeiro dia ajeitando tudo. Mas, no segundo dia, o homem foi trabalhar, a mulher quis conhecer a vizinha. O menino, para não ficar só num espaço que ainda não sentia seu, a acompanhou.

Entrou na casa atrás da mãe, sem esperança de ser feliz. Estava cheio de sombras, sem os companheiros. Mas logo o verde de seus olhos se refrescou com as coisas novas: a mulher suave, os quadros coloridos, o relógio cuco na parede. E, de repente, o susto de algo a se enovelar em sua perna: o gato. Reagiu, afastando-se. O bichano, contudo, se aproximou de novo, a maciez do pêlo agradando. E a mão desceu numa carícia.

O menino experimentou de fininho uma alegria, como sopro de vento no rosto. Já se sentia menos solitário. Não vigorava mais nele, unicamente, a satisfação do passado. A nova companhia o avivava. E era apenas o começo. Porque seu olhar apanhou, como fruta na árvore, uma bola no canto da sala. Havia mais surpresas ali. Ouviu um som familiar: os pirilins do videogame. E, em seguida, uma voz que gargalhava. Reconhecia o momento da jogada emocionante. Vinha lá do fundo da casa o convite. O gato continuava afofando-se nas suas pernas. Mas elas queriam o corredor. E, na leveza de um pássaro, o menino se desprendeu da mãe. Ela não percebeu, nem a dona da casa. Só ele sabia que avançava, tanta a sua lentidão: assim é o imperceptível dos milagres.

Enfiou-se pelo corredor silencioso, farejando a descoberta. Deteve-se um instante. O ruído lúdico novamente atraiu o menino. A voz o chamava sem saber seu nome.

Então chegou à porta do quarto - e lá estava o outro menino, que logo se virou ao dar pela sua presença. Miraram-se, os olhos secos da diferença. Mas já se molhando por dentro, se amolecendo. O outro não lhe perguntou quem era nem de onde vinha. Disse apenas: quer brincar? Queria. O Sol renasceu nele. Há tanto tempo precisava desse novo amigo.

 

 

 

 

 

 

 

Lado a lado, bem bolado

Pedro Bandeira (novaescola@fvc.org.br)
Ilustração: Daniel Bueno
Ilustração: Daniel Bueno
Ricardinho andava sem sorte. Acho até que, se ele fosse jogar cara-ou-coroa ou par-ou-ímpar dez vezes seguidas, perderia todas.
O caso é que ele tinha aprendido que "em cima" se escreve separado e "embaixo" se escreve junto. Mas, na hora de escrever suas redações, ele seeeeempre se confundia e acabava fazendo tudo ao contrário.
Foi queixar-se pra Vovó. Afinal, a Vovó tinha sido professora a vida inteira e sabia tudo, tudinho mesmo de todas as coisas.
- É fácil, Ricardinho - ensinou a Vovó. - Levante a mão esquerda, bem aberta.

- Assim?
- Não. Essa é a direita.

- Então é essa?

- É claro, você só tem duas, não é? A mão esquerda é a que fica do lado do coração.

- E de que lado fica o coração?

- Do lado dessa pintinha que você tem no rosto.

- Ah, ficou fácil! Mas o que tem a ver mão esquerda levantada com "em cima" e "embaixo"?

- Veja, querido: seus dedos, "em cima", estão separados e, "embaixo", eles estão juntos, grudados na palma, não estão? Quando você ficar em dúvida, é só levantar a mão aberta, que você nunca mais vai errar! "Em cima" é sempre separado e "embaixo" é sempre junto!
Ricardinho achou genial a idéia da Vovó. No dia seguinte, na escola, tratou logo de contar o novo truque para o Adriano, seu melhor amigo na 1ª série.

- Tá vendo, Adriano? É só levantar a mão esquerda e...

- Não vai dar certo - respondeu o amigo.

- Por que não?

- Porque, se eu levantar a mão esquerda, como é que eu vou escrever? Eu sou canhoto!

- Bom, então levante a direita, que dá no mesmo.

- E como é que eu sei qual é a direita?

- É fácil. Eu, por exemplo, sei que a minha mão esquerda é esta, que está do lado da pintinha que eu tenho na cara.

- Mas eu não tenho pintinha nenhuma na cara - discordou o Adriano.

Ricardinho chegou a sugerir que o Adriano pintasse uma pinta na cara com a caneta, mas Adriano acabou achando mais fácil saber que a mão esquerda era aquela com que ele escrevia e desenhava e a direita era... bom, era a outra! 

Memórias de uma infância química

Ilustração: Marcelo Hardt
Ilustração: Marcelo Hardt
Muitas das minhas lembranças da infância têm relação com metais: eles parecem ter exercido poder sobre mim desde o início. Destacavam-se em meio à heterogeneidade do mundo por seu brilho e cintilação, pelos tons prateados, pela uniformidade e peso. Eram frios ao toque, retiniam quando golpeados.

Eu adorava o amarelo do ouro, seu peso. Minha mãe tirava a aliança do dedo e me deixava pegá-la um pouco, comentando que aquele material se mantinha sempre puro e nunca perdia o brilho. "Está sentindo como é pesado?", ela acrescentava. "Mais pesado até do que o chumbo". Eu sabia o que era chumbo, pois já segurara os canos pesados e maleáveis que o encanador uma vez esquecera lá em casa. O ouro também era maleável, minha mãe explicou, por isso, em geral, o combinavam com outro material para torná-lo mais duro.

O mesmo acontecia com o bronze. Bronze! - a palavra em si já me soava como um clarim, pois uma batalha era o choque valente de bronze contra bronze, espadas de bronze em escudos de bronze, o grande escudo de Aquiles. O cobre também podia ser combinado com zinco para produzir latão, acrescentou minha mãe. Todos nós - minha mãe, meus irmãos e eu - tínhamos nosso menorá de bronze para o Hanucá. (O de meu pai era de prata.)

Eu conhecia o cobre - a reluzente cor rósea do grande caldeirão em nossa cozinha era cobre; o caldeirão era tirado do armário só uma vez por ano, quando os
marmelos e as maçãs ácidas amadureciam no pomar e minha mãe fazia geléias com eles.

Eu conhecia o zinco - o pequeno chafariz fosco e levemente azulado onde os pássaros se banhavam no jardim era feito de zinco; e o estanho - a pesada folha-deflandres
em que eram embalados os sanduíches para piquenique. Minha mãe me mostrou que, quando se dobrava estanho ou zinco, eles emitiam um "grito" espacial". "Isso é devido à deformação da estrutura cristalina", ela explicou, esquecendo que eu tinha 5 anos e por isso não a compreendia - mas ainda assim suas palavras me fascinavam, faziam-me querer saber mais.

Havia um enorme rolo compressor de ferro fundido no jardim - pesava mais de 200 quilos, meu pai contou. Nós, crianças, mal conseguíamos movê-lo, mas meu pai era fortíssimo e conseguia erguê-lo do chão. O rolo estava sempre um pouco enferrujado, e isso me afligia - a ferrugem descascava, deixando pequenas cavidades e escamas -, porque eu temia que o rolo inteiro algum dia se esfarelasse pela corrosão, se reduzisse a uma massa de pó e flocos avermelhados. Eu tinha necessidade de ver os metais como estáveis, como é o ouro - capazes de resistir aos danos e estragos do tempo.

 

 

 

 

 

Moinho de Sonhos

João Anzanello Carrascoza (novaescola@fvc.org.br)
Ilustração: Martha Werneck
Ilustração: Martha Werneck. Clique para ampliar
A mulher e o menino iam montados no cavalo; o homem ia ao lado, a pé. Andavam sem rumo havia semanas, até que deram numa aldeia à beira de um rio, onde as oliveiras vicejavam.
Fizeram uma pausa e, como a gente ali era hospitaleira e a oferta de serviço abundante, resolveram ficar. O homem arranjou emprego num moinho próximo à aldeia. A mulher se juntou a outras que colhiam azeitonas em terras ao redor de um castelo. Levou consigo o menino que, no meio do caminho, achou um velho cabo de vassoura e fez dele o seu cavalo. Deu-lhe o nome de Rocinante.
Ao chegar aos olivais, o pequeno encontrou o filho de outra colhedeira - um garoto que se exibia com um escudo e uma espada de pau.
Os dois se observaram à distância. Cada um se manteve junto à sua mãe, sem saber como se libertar dela. Vigiavam-se. Era preciso coragem para se acercar. Mas meninos são assim: se há abismos, inventam pontes.
De súbito, estavam frente a frente. Puseram-se a conversar, embora um e outro continuassem na sua. Logo esse já sabia o nome daquele: o menino recém-chegado se chamava Alonso; o outro, Sancho.

Começaram a se misturar:

- Deixa eu brincar com seu cavalo?, pediu Sancho.

- Só se você me emprestar sua espada, respondeu Alonso.

Iam se entendendo, apesar de assustados com a felicidade da nova companhia.

Avançaram na entrega:

- Tá vendo aquele moinho gigante?, apontou Alonso. Meu pai sozinho é que faz ele girar.

- Seu pai deve ter braços enormes, disse Sancho.

- Tem! Mas nem precisava, respondeu Alonso. Ele move o moinho com um sopro.

Sancho achou graça. Também tinha uma proeza a contar:

- Tá vendo o castelo ali?, apontou. Meu pai disse que o dono tem tanta terra que o céu não dá para cobrir ela toda.

- E se a gente esticasse o céu como uma lona e cobrisse o que está faltando?, propôs Alonso.

- Seria legal, disse Sancho. Mas ia dar um trabalhão.

- Temos de crescer primeiro.

- Bom, enquanto a gente cresce, vamos pensar num jeito de subir até o céu! - disse Alonso.

- Vamos!, concordou Sancho.

Sentaram-se na relva. O cavalo, a espada e o escudo entre os dois. Um sopro de vento passou por eles.
Já eram amigos: moviam juntos o mesmo sonho.

Nem Tudo O Que Seu Mestre Mandar!

Rosane Pamplona (novaescola@fvc.org.br)
Ilustração: Cris Burger
Ilustração: Cris Burger. Clique para ampliar
Xang era um sábio chinês. Seus alunos aceitavam seus ensinamentos sem pestanejar:

- Sim, mestre!

- Eu ouço e obedeço, mestre!

Um dia, Xang resolveu fazer uma viagem com três dos seus fiéis alunos. Instalaram-se numa carroça puxada por dois burrinhos e lá se foram: nhec, nhec. Xang, já velhinho, logo sentiu sono. Tirou as sandálias e pediu aos jovens:

- Por favor, me deixem dormir! Fiquem bem quietos!

Dali a pouco roncava. Na primeira curva do caminho, as sandálias dele rolaram pela estrada. Os discípulos nem se mexeram. Quando o mestre acordou, logo as procurou.

- Rolaram pela estrada - disseram.

- E vocês não pararam a carroça? Não fizeram nada?

- Fizemos sim, senhor. Obedecemos: ficamos bem quietos.

- Ai, está bem - conformou-se o mestre. Mas se eu cochilar de novo prestem atenção se alguma coisa cair da carroça, ouviram?

- Ouvimos e obedecemos!

Xang cobriu os pés com uma coberta e adormeceu. Entretanto, no balançar da carroça, a coberta deslizou e lá se foi. O mestre acordou com frio. Mas cadê a coberta? Será que...

- Escorregou pela estrada - confirmaram os três.

- E o que vocês fizeram?

- Fizemos só que o mestre mandou. Prestamos atenção.

- Não! - esbravejou Xang. Vocês tinham de pegar a coberta de volta! Atenção: se eu dormir e alguma coisa cair da carroça, peçam para parar e PONHAM-O-QUE-CAIU-DE-VOLTA-NA-CARROÇA, entendido?

- PERFEITAMENTE!

E a viagem continuou: nhec, nhec. O mestre foi cabeceando e cochilou. Dali a pouco, os jumentos sentiram necessidade de fazer... suas necessidades. Ploft, ploft, ploft, caíram os cocozinhos pelo caminho. Os discípulos mandaram parar a carroça e, com muito cuidado, foram pondo os fedidos pelotinhos para dentro. Aquela agitação fez Xang acordar. Nossa, que cheirinho!

- Esperem! O que estão fazendo?

- Apenas obedecendo! - juraramos três. - Pondo de volta o que caiu da carroça.

- Não, mas isso não!

Ai, com aqueles cabeças-duras, só mesmo muita paciência:

- Está bem, vamos começar de novo. Vou fazer uma lista de tudo o que há na carroça. Se algo cair, verifiquem se está nela. Se não estiver, não peguem de volta, certo?

- Somos pura obediência, ó, mestre!

Xang escreveu a lista. Que canseira! Mas agora podia dormir tranquilo... E a carroça subiu uma estradinha íngreme. Numa curva mais fechada, ops, quem é que caiu dessa vez? O mestre! Ele escorregou e se foi ribanceira abaixo.

- Socorro! - gritou - Venham me pegar!

Graças aos céus ele conseguiu se agarrar numa raiz do barranco.

- Ei, o que estão esperando? Me ajudem! - chamou.

Mas os discípulos, imperturbáveis, consultavam a lista.

- Seu nome não está escrito aqui - explicaram. - Não podemos pegá-lo, ó, mestre!

Não teve jeito: Xang, com muito esforço, subiu o barranco e voltou para a carroça. Mas não dormiu mais...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O amigo de Juliana

Ilustração: Eva Furnari
Ilustração: Eva Furnari
Juliana tinha um amigo chamado Fungo. Ele morava na casa de bonecas
e conseguia até ajeitar-se bem nas pequenas cadeiras e na caminha azul, apesar de ser mais gordo que elas.
Fungo era talentoso. Escrevia poemas, histórias e desejava ser um grande escritor, porém sentia falta de um mestre. Juliana, definitivamente, não podia ser esse mestre, pois  prendera a escrever havia pouco tempo. Além do mais, ultimamente a amizade deles andava estremecida, porque Juliana dava mais atenção às bonecas que a ele. Fungo não entendia qual era a graça que ela via naquelas bonecas mudas, sem cultura e sem  sentimentos. Fungo suspeitava que fossem mesmo burras, principalmente aquele boneco Tob, que parecia uma montanha de músculos inúteis, pois nem se trocar sozinho ele sabia. Era uma dependência total, um vexame, e Juliana é que precisava trocá-lo toda vez.
Numa certa madrugada, em que Fungo estava sem sono, viu jogado no chão o caderno de Juliana com uma redação assim:

Ilustração: Eva Furnari

Fungo leu e achou pobre, mal escrito, com cinco erros de português, além da falta de estilo. Num ato de ousadia arrancou a página e reescreveu a redação do jeito que ele achava que ficava melhor:

Ilustração: Eva
Furnari
Fungo foi dormir orgulhosíssimo de sua redação, feliz com a chance de receber comentários da professora de Português de Juliana, essa, sim, uma verdadeira mestra.
No dia seguinte, a amiga voltou furiosa da escola e proibiu Fungo de escrever uma linha que fosse em seus cadernos, pois os colegas da classe tinham achado que ela estava maluca por escrever tais bobagens. Chateado, Fungo recolheu-se à sua casinha e esperou anoitecer.
Quando Juliana finalmente adormeceu, ele foi silenciosamente até a mochila, apanhou o caderno da menina e leu o comentário da professora:
Redação muito criativa, cheia de imaginação e bem escrita, precisa apenas caprichar mais na letra. Nota dez.
Fungo adorou, achou o máximo e pensou até em entrar para a escola. Claro, só quando a Juliana se acalmasse. Talvez pudesse ficar na classe dentro da mochila, já que os adultos com certeza não iriam entender um monstro culto como ele querendo assistir aula. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O baú secreto da vovó

Heloisa Prieto (novaescola@fvc.org.br)
Ilustração: Daniel Bueno
Ilustração: Daniel Bueno
Quando eu era menina e sentia medo, no lugar de chorar, ficava com raiva.

Na noite em que descobri o baú de minha avó, eu estava em Santos. Trovejava muito. Apavorada, comecei a gritar que odiava o mar. Foi quando minha avó me chamou e disse.

- Minha neta, você sabia que eu tenho um baú cheio de segredos?

- Como assim? Onde?

- Lá no fundo da garagem.

Pronto. Nada como a curiosidade para espantar o medo. Na garagem, vovó o abriu e retirou de dentro dele uma espécie de régua.

- Você sabe o que é isso?

- Uma régua esquisita - respondi.

- Não, isso é uma palmatória. Quem errasse na escola levava uma batida na palma da mão.

- Não acredito! E por que a senhora guardou este treco horrível?

- Pra lembrar que a gente precisa ser mais forte do que as injustiças. Olhe... meu dedal preferido. Foi com ele que eu costurei esta roupa - e ela me mostrou um vestidinho com uma espécie de short por baixo.

- Você jogava tênis, vovó?

- Não, isso é um maiô!

- Você nadava de vestido?

- Sim, e era considerada atrevida. Mas foi assim que conquistei seu avô.

- Nadando de roupa?

- Eu vinha de uma família pobre. Seu avô, não. Ele lia, gostava de dançar.

- E de nadar também?

- Sim, e por isso fiz este maiozinho. Corri até a praia de chapéu. Seu avô estava tomando sol. Fingi que tinha perdido o chapéu no mar. Ele, como era um cavalheiro, veio me ajudar. O chapéu foi parar no fundo. Então apostamos uma corrida para ver quem o apanhava. Ele gostou da minha ousadia.

- Foi assim que vocês começaram a namorar?

- E logo me casei. Guardei o dedal pra lembrar que a gente precisa tecer a felicidade, e o maiô, porque um pouco de coragem não faz mal a ninguém. Olhe esta caixinha de música. Seu avô me deu quando você nasceu. Não é linda?

Vovó mostrou para mim outros objetos e assim fui descobrindo que se não fosse o mar, que eu temia, não haveria o encontro de meus avós e que viver é saber perder o medo de tudo o que a gente nunca espera e nunca vai conseguir controlar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O pobre cocozinho

Rosane Pamplona (novaescola@fvc.org.br)
Ilustração: Biry Sarkis
Ilustração: Biry Sarkis
Era uma vez um cocô. Um cocozinho feio e fedidinho, jogado no pasto de uma fazenda.

Coitado do cocô! Desde que veio ao mundo, ele vinha tentando conversar com alguém, fazer amigos, mas quem passava por ali não queria saber dele:

- Hum! Que coisa fedida! - diziam as crianças.

- Cuidado! Não encostem na sujeira! - avisavam os adultos.

E o cocozinho, sozinho, passava o tempo cantando, triste:

Sou um pobre cocozinho

Tão feinho, fedidinho

Eu não sirvo para nada

Ninguém quer saber de mim...

De vez em quando ele via uma criança e torcia para que ela chegasse perto dele, mas era sempre a mesma coisa:

- Olha a porcaria! - repetiam todos.

Não restava nada para o cocô fazer, a não ser cantar baixinho:

Sou um pobre cocozinho

Tão feinho, fedidinho...

Um dia ele viu que um homem se aproximava. Já imaginando o que ia acontecer, o cocozinho se encolheu. "Mais um que vai me xingar", pensou. Mas... Oh! Surpresa! O homem foi chegando, abrindo um sorriso, e seu rosto se iluminou:

- Mas que maravilha! Que belo cocô! Era exatamente disso que eu precisava.

O cocô nem acreditava no que estava ouvindo. Maravilha, ele? Precisando?

Aquele homem devia ser maluco!

Pois aquele homem não era maluco, não. Era um jardineiro.

E, usando uma pá, com todo o cuidado, ele levou o cocozinho para um lindo jardim.

Ali, acomodou-o na terra, ao pé de uma roseira. E, depois de alguns dias, o cocozinho percebeu, feliz e orgulhoso, que, graças a sua força, a roseira tinha feito brotar uma magnífica rosa vermelha, bela e perfumada.

Se a terra não existisse, a gente pisava onde?

Ilustração: Roger MelloRicardo Azevedo (novaescola@fvc.org.br)

Tênis é de lona e borracha. Cueca é de pano e elástico. Caderno é de arame e folha de papel. Televisão é de plástico com uma antena em cima e uma tela na frente.

Casa é feita de telhado, parede, piso, porta e janela. Vaca é de couro, chifre e quatro tetas pingando leite. Cachorro é um ônibus peludo cheio de pulgas. Ser humano é feito de carne, osso, coração e idéias na cabeça.

E o mundo em que vivemos?

O mundo é um monte de terra cercada de água por todos os lados.

A água é o mar, o rio, o lago, a chuva, a poça, a lágrima e o cuspe.

A terra é a terra mesmo.

Tem gente que pensa que terra só serve para cavar buraco no chão, para ser hotel de minhoca, para enfiar poste de luz ou então para sujar o pé de lama em dia de chuva, mas não é nada disso.

Se não fosse a terra, a gente pisava onde?

Se não fosse a terra, a gente construía nossa casa onde?

E as cidades? E as estradas? E os campinhos de futebol?

Sem a terra a gente não ia jogar bola nunca mais!

Uma vez eu tive um sonho. Sonhei que estava dormindo com vontade de fazer xixi. Continuei sonhando e pulei da cama. Pobre de mim! Quando pisei no chão, descobri que naquele sonho não existia chão. Lá fui eu caindo, despencando, voando, esvoaçando. O mundo ali era um lugar sem terra, por isso tudo vivia boiando no ar. Saí do quarto, fui voejando, passei pela sala cheia de cadeiras, móveis e mesas voando e cheguei no banheiro. Lá dentro, o chuveiro, a pia e a privada pareciam umas coisas brancas flutuando no espaço. Fui tentar fazer xixi, mas a privada não parava quieta. A vontade apertava cada vez mais. Tentei fazer pontaria, caprichei na mira, mas não deu. No fim, o sonho acabou. Acordei todo molhado com meu irmão, lá embaixo, gritando socorro. Acontece que a gente dorme em cama beliche, eu em cima e ele embaixo.

Meu irmão me xingou de tudo quanto foi nome. Expliquei a ele que se não fosse a terra firme o beliche estaria voando e aí, sim, ia ser muito pior.

Pensando bem, a terra é a coisa mais importante do mundo em que vivemos. Ela é o solo, o chão, a gleba, o piso, o porto, o lugar onde a gente fica em pé e constrói a vida.

Para falar a verdade, a terra é uma espécie de mãe. A mãe de todos nós.

De onde vêm as árvores para dar sombra e segurança? Da terra.

De onde vêm as frutas para a gente chupar? Da terra.

De onde vem a nascente do rio? E a flor? E o passarinho? E a onça? E a tartaruga? E a borboleta? E o macaco? E o besourinho? E todos os bichos do mundo inteiro menos os peixes e as estrelas-do-mar?

Sem a terra, não ia ter nem milho, laranja, caqui, jabuticaba, banana, pêra, uva, cacau, pitanga, mexerica, romã, maçã, abacate, melancia, abacaxi, nem amendoim nem nada.

O mundo ia ser só um monte de coisa nenhuma cercado de água para todos os lados.

Mas a terra tem seus truques. Ela não gosta de ser maltratada, não senhor!

Quando fazem queimadas ou destroem o mato ou enchem o chão de lixo e porcaria a terra fica triste vira deserto, corpo árido, seco, estéril, que não dá mais nada.

Ela, que era generosa, formosa, úmida, florida, risonha, fofa, macia, fértil, cheia de sombra, cheia de perfume, cheia de riachinhos, borboletas, besourinhos, bichinhos e bichões, de repente fica tão dura e rachada que só consegue inventar pó, areia e desolação.

Se a terra fosse um deserto ia ter chão, mas como a gente ia ficar?

 

 

 

 

 

Tadeu X Maria Angélica

José Roberto Torero (novaescola@fvc.org.br)
Ilustração: Fido Nesti
Ilustração: Fido Nesti
À primeira vista, Tadeu e Maria Angélica formavam um casal normal. Gostavam de cinema, de música e de viagens. Mas, acima de tudo, amavam o futebol. Só que, infelizmente, torciam para times rivais.

No começo, isso não era um grande problema. Maria Angélica não se importava quando Tadeu comemorava as vitórias do time dele e Tadeu até dava parabéns para Maria Angélica quando o clube dela vencia. Mas talvez isso só acontecesse porque, na verdade, os dois times eram muito ruins, e as vitórias, muito raras.

Então, no campeonato deste ano, as coisas mudaram. Novos reforços foram apresentados, técnicos foram contratados, as equipes melhoraram e as torcidas começaram a ter esperanças.

As coisas mudaram tanto que os dois times chegaram à final do torneio. Tadeu comprou um uniforme azul e amarelo para ir ao estádio. Maria Angélica foi com uma enorme bandeira verde e branca.

Os dois sentaram lado a lado durante a partida. Para evitar brigas, tentavam não vibrar demais quando seus times acertavam um lance, nem zombar do outro quando
a equipe adversária cometia algum erro.

O zero a zero vinha mantendo a paz do casal, porém, no último lance do jogo, quando o time de Tadeu marcou o gol da vitória, ele não se conteve e gritou: "Gooooooooool!"

E assim mesmo, com dez letras "o".

Mas ele não parou por aí. Começou a dançar em volta de Maria Angélica enquanto cantava "Ê, ô, ê, ô, o meu time é um terror, ê, ô, ê, ô, o seu time é perdedor".

Maria Angélica ficou verde de ódio. Então disparou:

- Tadeu, você passou dos limites. Cartão vermelho!

- Como assim, Maria Angélica, você está me expulsando de campo?

- E do casamento. Você pisou na bola!

- Tá, eu exagerei, mas também não precisa entrar de sola.

- Agora é tarde. Você chutou nosso amor para escanteio!

- Calma, eu não quero tirar o time de campo. Vamos tentar um segundo tempo...

- Não, senhor. Você já estava na marca do pênalti. Pode ir para o chuveiro!

- Quem sabe uma prorrogação?

- Não. Fim de jogo.

Tadeu sentou na arquibancada, apoiou a cabeça nas mãos e disse:

- Tudo bem, Maria Angélica, se você quer que eu pendure as chuteiras, é assim que vai ser. Mas isso me deixa muito triste porque a gente fazia uma tabelinha e tanto. Eu acho que você bate um bolão e sempre que eu chegava em casa corria para o abraço. Sabe, eu vestia a camisa do nosso casamento... Eu jogava por amor...

Aquela declaração deixou os olhos de Maria Angélica encharcados como um Maracanã sem drenagem. Então ela jogou longe sua bandeira e pulou sobre Tadeu como se ele tivesse marcado um gol decisivo.

Tadeu olhou fundo nos olhos de Maria Angélica e, com voz emocionada, cantou: "Ê, ô, ê, ô, nosso amor é um terror!"

- Tadeu, foi a coisa mais linda que alguém já me disse. Então os dois beijaram-se, fizeram as pazes e viveram felizes para sempre.

Ou, pelo menos, até a próxima final de campeonato.

 

 

 

 

 

 

 

Sobrou pra mim


Ilustração: Suppa
Ilustração: Suppa
Quando eu tinha uns 8 anos, mais ou menos, eu morava com minha avó e com a irmã dela, tia Emília. Nossa rua era sossegada, quase não passava carro nem caminhão.

Eu ia à escola de manhã e de tarde eu fazia minhas lições e ia pra rua brincar com meus amigos.

Às cinco e meia em ponto minha avó me chamava para tomar banho e rezar, minha avó e minha tia rezavam todas as tardes às seis horas.

Depois do jantar ficávamos na sala, eu, lendo, minha avó e minha tia bordando ou costurando.

Televisão a gente só via uma vez ou outra. Minha avó me deixava ver jogos de futebol ou basquete, mas tinha horror a novelas e a programas de auditório. Era chato de matar!

A luz era muito pouca, que a minha avó tinha mania de fazer economia, ela dizia que não era sócia da Light.

Então eu cansava de ler e ficava inventando outras coisas pra fazer. Eu ficava desenhando, ficava enchendo os ós do jornal, brincava com as minhas joaninhas…

Uma vez eu amarrei um fio de linha na perna de um besouro e quando ele voou, com o fio pendurado, minha tia levou o maior susto.

Uma outra vez, eu inventei uma coisa legal! Enquanto minha avó e minha tia ficavam rezando, às seis horas, eu amarrei um fio de linha na perna da cadeira de balanço. Depois do jantar nós fomos para a sala. Então, de vez em quando, eu puxava o fio e a cadeira dava uma balançadinha.

No começo elas não viram nada. Até que tia Emília, muito assustada, chamou a atenção da vovó.

- Ó, Amélia - minha avó se chamava Amélia - Ó, Amélia, você não viu a cadeira balançar?

Minha avó não ligou muito. Mas tia Emília ficou de olho. Daí a pouco ela cutucou minha avó:

- Olha só, Amélia, ainda está balançando. Minha avó olhou e ficou desconfiada.

As duas se olharam e fizeram sinais para não assustar o menino…

Naquele dia, eu não mexi mais na cadeira. Mas no dia seguinte, eu fiz tudo de novo, só a minha tia é que viu a cadeira balançar. Ela estava apavorada!

Então eu deixei passar uns dois dias e de novo dei uma balançadinha na cadeira. E dessa vez as duas velhas viram! Gente, que susto que elas tomaram! Me agarraram pela mão e correram para o oratório para rezar.

Até aí eu estava me divertindo! Mas o que eu não podia imaginar é que no dia seguinte, na hora em que eu costumava ir para a rua brincar, minha avó me chamou, me mandou tomar banho, me vestir e me levou para a igreja.

Nove segundas-feiras eu tive que ir à igreja com minha vó e minha tia para rezar pelas almas do purgatório!  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O primeiro beijo

Clarice Lispector (novaescola@fvc.org.br)
Ilustração Ana Raquel
Ilustração Ana Raquel
Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.

- Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Ele foi simples:

- Sim, já beijei antes uma mulher.

- Quem era ela? - perguntou com dor.

Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.

O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir - era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.

E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.

E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engulia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.

A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio-dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.

E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, talvez horas, enquanto sua sede era de anos.

Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.

O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.

De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.

Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.

E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.

Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida... Olhou a estátua nua.

Ele a havia beijado.

Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.

Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.

Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...

Ele se tornara homem.

 

 

Carta de um defunto rico


Ilustração Alexandre Camanho
Ilustração Alexandre Camanho
 "Meus caros amigos e parentes. Cá estou no carneiro nº 7..., da 3ª quadra, à direita, como vocês devem saber, porque me puseram nele. Este Cemitério de São João Batista da Lagoa não é dos piores. Para os vivos, é grave e solene, com o seu severo fundo de escuro e padrasto granítico. A escassa verdura verde-negra das montanhas de roda não diminuiu em nada a imponência da antiguidade da rocha dominante nelas. Há certa grandeza melancólica nisto tudo; mora neste pequeno vale uma tristeza teimosa que nem o sol glorioso espanta... Tenho, apesar do que se possa supor em contrário, uma grande satisfação; não estou mais preso ao meu corpo. Ele está no aludido buraco, unicamente a fim de que vocês tenham um marco, um sinal palpável para as suas recordações; mas anda em toda a parte.

Consegui afinal, como desejava o poeta, elevar-me bem longe dos miasmas mórbidos, purificar-me no ar superior - e bebo, como um puro e divino licor, o fogo claro que enche os límpidos espaços.

Não tenho as dificultosas tarefas que, por aí, pela superfície da terra, atazanam a inteligência de tanta gente.

Não me preocupa, por exemplo, saber se devo ir receber o poderoso imperador do Beluchistã com ou sem colarinho; não consulto autoridades constitucionais para autorizar minha mulher a oferecer ou não lugares do seu automóvel a príncipes herdeiros - coisa, aliás, que é sempre agradável às senhoras de uma democracia; não sou obrigado, para obter um título nobiliárquico, de uma problemática monarquia, a andar pelos adelos, catando suspeitas bugigangas, e pedir a literatos das ante-salas palacianas que as proclamem raridades de beleza, a fim de encherem salões de casas de bailes e emocionarem os ingênuos com recordações de um passado que não devia ser avivado.

Afirmando isto, tenho que dizer as razões. Em primeiro lugar, tais bugigangas não têm, por si, em geral, beleza alguma; e, se a tiveram era emprestada pelas almas dos que se serviram delas. Semelhante beleza só pode ser sentida pelos descendentes dos seus primitivos donos.

Demais, elas perdem todo o interesse, todo o seu valor, tudo o que nelas possa haver de emocional, desde que percam a sua utilidade e desde que sejam retiradas dos seus lugares próprios. Há senhoras belas, no seu interior, com os seus móveis e as costuras; mas que não o são na rua, nas salas de baile e de teatro. O homem e as suas criações precisam, para refulgir, do seu ambiente próprio, penetrado, saturado das dores, dos anseios, das alegrias de sua alma; é com as emanações de sua vitalidade, é com as vibrações misteriosas de sua existência que as coisas se enchem de beleza.

É o sumo de sua vida que empresta beleza às coisas mortais; é a alma do personagem que faz a grandeza do drama, não são os versos, as metáforas, a linguagem em si etc. etc. Estando ela ausente, por incapacidade do ator, o drama não vale nada.

Por isso, sinto-me bem contente de não ser obrigado a caçar, nos belchiores e cafundós domésticos, bugigangas, para agradar futuros e problemáticos imperantes, porque teria que dar a elas alma, tentativa em projeto que, além de inatingível, é supremamente sacrílego.

De resto, para ser completa essa reconstrução do passado ou essa visão dele, não se podia prescindir de certos utensílios de uso secreto e discreto, nem tampouco esquecer determinados instrumentos de tortura e suplício, empregados pelas autoridades e grão-senhores no castigo dos seus escravos.

Há, no passado, muitas coisas que devem ser desprezadas e inteiramente eliminadas, com o correr do tempo, para a felicidade da espécie, a exemplo do que a digestão faz, para a do indivíduo, com certas substâncias dos alimentos que ingerimos.

Mas... estou na cova e não devo relembrar aos viventes coisas dolorosas.

Os mortos não perseguem ninguém e só podem gozar da beatitude da superexistência aqueles que se purificam pelo arrependimento e destroem na sua alma todo o ódio, todo o despeito, todo o rancor.

Os que não conseguem isso - ai deles!

Alonguei-me nessas considerações intempestivas, quando a minha tenção era outra.

O meu propósito era dizer a vocês que o enterro esteve lindo. Eu posso dizer isto sem vaidade, porque o prazer dele, da sua magnificência, do seu luxo, não é propriamente meu, mas de vocês, e não há mal algum que um vivente tenha um naco de vaidade, mesmo quando é presidente de alguma coisa ou imortal da Academia de Letras.

Enterro e demais cerimônias fúnebres não interessam ao defunto; elas são feitas por vivos para vivos.

É uma tolice de certos senhores disporem nos seus testamentos como devem ser enterrados. Cada um enterra seu pai como pode - é uma sentença popular, cujo ensinamento deve ser tomado no sentido mais amplo possível, dando aos sobreviventes a responsabilidade total do enterro dos seus parentes e amigos, tanto na forma como no fundo.

O meu, feito por vocês, foi de truz. O carro estava soberbamente agaloado; os cavalos bem paramentados e empenachados; as riquíssimas coroas, além de ricas, eram lindas. Da Haddock Lobo, daquele casarão que ganhei com auxílio das ordens terceiras, das leis, do câmbio e outras fatalidades econômicas e sociais que fazem pobres a maior parte dos sujeitos e a mim me fizeram rico; da porta dele até o portão de São João Batista, o meu enterro foi um deslumbramento. Não havia, na rua, quem não perguntasse quem ia ali.

Triste destino o meu, esse de, nos instantes do meu enterramento, toda uma população de uma vasta cidade querer saber o meu nome e dali a minutos, com a última pá de terra deitada na minha sepultura, vir a ser esquecido, até pelos meus próprios parentes.

Faço esta reflexão somente por fazer, porque, desde muito, havia encontrado, no fundo das coisas humanas, um vazio absoluto.

Essa convicção me veio com as meditações seguidas que me foram provocadas pelo fato de meu filho Carlos, com quem gastei uma fortuna em mestres, a quem formei, a quem coloquei altamente, não saber nada desta vida, até menos do que eu.

Adivinhei isto e fiquei a matutar como que é que ele gozava de tanta consideração fácil e eu apenas merecia uma contrariedade? Eu, que...

Carlos, meu filho, se leres isto, dá o teu ordenado àquele pobre rapaz que te fez as sabatinas por "tuta-e-meia"; e contenta-te com o que herdaste do teu pai e com o que tem tua mulher! Se não fizeres... ai de ti!

Nem o Carlos nem vocês outros, espero, encontrarão nesta última observação matéria para ter queixa de mim. Eu não tenho mais amizade, nem inimizade.

Os vivos me merecem unicamente piedade; e o que me deu esta situação deliciosa em que estou foi ter sido, às vezes, profundamente bom. Atualmente, sou sempre...

Não seria, portanto, agora que, perto da terra, estou, entretanto, longe dela, que havia de fazer recriminações a meu filho ou tentar desmoralizá-lo. Minha missão, quando me consentem, é fazer bem e aconselhar o arrependimento.

Agradeço a vocês o cuidado que tiveram com o meu enterro; mas, seja-me permitido, caros parentes e amigos, dizer a vocês uma coisa. Tudo estava lindo e rico; mas um cuidado vocês não tiveram. Por que vocês não forneceram librés novas aos cocheiros das caleças, sobretudo, ao do coche, que estava vestido de tal maneira andrajosa que causava dó?

Se vocês tiverem que fazer outro enterro, não se esqueçam de vestir bem os pobres cocheiros, com o que o defunto, caso seja como eu, ficará muito satisfeito. O brilho do cortejo será maior e vocês terão prestado uma obra de caridade.

Era o que eu tinha a dizer a vocês. Não me despeço, pelo simples motivo de que estou sempre junto de vocês. É tudo isto do

José Boaventura da Silva.
N.B. - Residência, segundo a Santa Casa: Cemitério de São João Batista da Lagoa; e segundo a sabedoria universal, em toda a parte. - J.B.S."

Posso garantir que transladei esta carta para aqui sem omissão de uma vírgula.

 

 

 

 

 

 

Dois velhinhos

Dalton Trevisan (novaescola@fvc.org.br)

Ilustração Omar Grassetti
Ilustração Omar Grassetti 
Dois inválidos, bem velhinhos, esquecidos numa cela de asilo.

Ao lado da janela, retorcendo os aleijões e esticando a cabeça, apenas um consegue espiar lá fora.

Junto à porta, no fundo da cama, para o outro é a parede úmida, o crucifixo negro, as moscas no fio de luz. Com inveja, pergunta o que acontece. Deslumbrado, anuncia o primeiro:

- Um cachorro ergue a perninha no poste.

Mais tarde:

- Uma menina de vestido branco pulando corda.

Ou ainda:

- Agora é um enterro de luxo.

Sem nada ver, o amigo remorde-se no seu canto. O mais velho acaba morrendo, para alegria do segundo, instalado afinal debaixo da janela.

Não dorme, antegozando a manhã. O outro, maldito, lhe roubara todo esse tempo o circo mágico do cachorro, da menina, do enterro de rico.

Cochila um instante - é dia. Senta-se na cama, com dores espicha o pescoço: no beco, muros em ruína, um monte de lixo.

 

 

 

 

 

 

 

Conto de escola

Machado de Assis (novaescola@fvc.org.br)
Ilustração Renato Alarcão
Ilustração Renato Alarcão 
A escola era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de 1840. Naquele dia - uma segunda-feira, do mês de maio - deixei-me estar alguns instantes na Rua da Princesa a ver onde iria brincar amanhã. Hesitava entre o morro de S. Diogo e o Campo de Sant’Ana, que não era então esse parque atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o problema. De repente disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a escola. Aqui vai a razão.

Na semana anterior tinha feito dois suetos e, descoberto o caso, recebi o pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro. As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal de Guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande posição comercial e tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham começado ao balcão. Ora, foi a lembrança do último castigo que me levou naquela manhã para o colégio. Não era um menino de virtudes.

Subi a escada com cautela, para não ser ouvido do mestre, e cheguei a tempo; ele entrou na sala três ou quatro minutos depois. Entrou com o andar manso do costume, em chinelas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada e desbotada, calça branca e tesa e grande colarinho caído. Chamava-se Policarpo e tinha perto de cinqüenta anos ou mais. Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a boceta de rapé e o lenço vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou os olhos pela sala. Os meninos, que se conservaram de pé durante a entrada dele, tornaram a sentar-se. Tudo estava em ordem; começaram os trabalhos.

- Seu Pilar, eu preciso falar com você - disse-me baixinho o filho do mestre.

Chamava-se Raimundo este pequeno, e era mole, aplicado, inteligência tarda. Raimundo gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta ou cinqüenta minutos; vencia com o tempo o que não podia fazer logo com o cérebro. Reunia a isso um grande medo ao pai. Era uma criança fina, pálida, cara doente; raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pai e retirava-se antes. O mestre era mais severo com ele do que conosco.

- O que é que você quer?

- Logo - respondeu ele com voz trêmula.

Começou a lição de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados da escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra convicção. Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos de ferro. Na lição de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de todos, mas deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na tábua, ocupação sem nobreza nem espiritualidade, mas em todo caso ingênua. Naquele dia foi a mesma coisa; tão depressa acabei, como entrei a reproduzir o nariz do mestre, dando-lhe cinco ou seis atitudes diferentes, das quais recordo a interrogativa, a admirativa, a dubitativa e a cogitativa. Não lhes punha esses nomes, pobre estudante de primeiras letras que era; mas, instintivamente, dava-lhes essas expressões. Os outros foram acabando; não tive remédio senão acabar também, entregar a escrita e voltar para o meu lugar.

Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso, ardia por andar lá fora e recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros meninos vadios, o Chico Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do bairro e do gênero humano. Para cúmulo de desespero, vi através das vidraças da escola, no claro azul do céu, por cima do Morro do Livramento, um papagaio de papel, alto e largo, preso de uma corda imensa, que bojava no ar, uma coisa soberba. E eu na escola, sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a gramática nos joelhos.

- Fui um bobo em vir - disse eu ao Raimundo.

- Não diga isso - murmurou ele.

Olhei para ele; estava mais pálido. Então lembrou-me outra vez que queria pedir-me alguma coisa, e perguntei-lhe o que era. Raimundo estremeceu de novo e, rápido, disse-me que esperasse um pouco; era uma coisa particular.

- Seu Pilar... - murmurou ele daí a alguns minutos.

- Que é?

- Você...

- Você quê?

Ele deitou os olhos ao pai e depois a alguns outros meninos. Um destes, o Curvelo, olhava para ele, desconfiado, e o Raimundo, notando-me essa circunstância, pediu alguns minutos mais de espera. Confesso que começava a arder de curiosidade. Olhei para o Curvelo e vi que parecia atento; podia ser uma simples curiosidade vaga, natural indiscrição; mas podia ser também alguma coisa entre eles. Esse Curvelo era um pouco levado do diabo. Tinha onze anos, era mais velho que nós.

Que me quereria o Raimundo? Continuei inquieto, remexendo-me muito, falando-lhe baixo, com instância, que me dissesse o que era, que ninguém cuidava dele nem de mim. Ou então, de tarde...

- De tarde, não - interrompeu-me ele -; não pode ser de tarde.

- Então agora...

- Papai está olhando.

Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho, buscava-o muitas vezes com os olhos, para trazê-lo mais aperreado. Mas nós também éramos finos; metemos o nariz no livro e continuamos a ler. Afinal cansou e tomou as folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as idéias e as paixões. Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência, e que era grande a agitação pública. Policarpo tinha decerto algum partido, mas nunca pude averiguar esse ponto. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá estava, pendurada do portal da janela, à direita, com os seus cinco olhos do diabo. Era só levantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força do costume, que não era pouca. E daí, pode ser que alguma vez as paixões políticas dominassem nele a ponto de poupar-nos uma ou outra correção. Naquele dia, ao menos, pareceu-me que lia as folhas com muito interesse; levantava os olhos de quando em quando, ou tomava uma pitada, mas tornava logo aos jornais e lia a valer.
Ilustração Renato Alarcão
Ilustração Renato Alarcão
No fim de algum tempo - dez ou doze minutos - Raimundo meteu a mão no bolso das calças e olhou para mim.

- Sabe o que tenho aqui?

- Não.

- Uma pratinha que mamãe me deu.

- Hoje?

- Não, no outro dia, quando fiz anos...

- Pratinha de verdade?

- De verdade.

Tirou-a vagarosamente e mostrou-me de longe. Era uma moeda do tempo do rei, cuido que doze vinténs ou dois tostões, não me lembra; mas era uma moeda, e tal moeda que me fez pular o sangue no coração. Raimundo revolveu em mim o olhar pálido; depois perguntou-me se a queria para mim. Respondi-lhe que estava caçoando, mas ele jurou que não.

- Mas então você fica sem ela?

- Mamãe depois me arranja outra. Ela tem muitas que vovô lhe deixou, numa caixinha; algumas são de ouro. Você quer esta?

Minha resposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de olhar para a mesa do mestre. Raimundo recuou a mão dele e deu à boca um gesto amarelo, que queria sorrir. Em seguida propôs-me um negócio, uma troca de serviços; ele me daria a moeda, eu lhe explicaria um ponto da lição de sintaxe. Não conseguira reter nada do livro e estava com medo do pai. E concluía a proposta esfregando a pratinha nos joelhos...

Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma idéia antes própria de homem; não é também que não fosse fácil em empregar uma ou outra mentira de criança. Sabíamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos termos da proposta, na troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva, toma lá, dá cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar para ele, à toa, sem poder dizer nada.

Compreende-se que o ponto da lição era difícil e que o Raimundo, não o tendo aprendido, recorria a um meio que lhe pareceu útil para escapar ao castigo do pai. Se me
tem pedido a coisa por favor, alcança-la-ia do mesmo modo, como de outras vezes; mas parece que a lembrança das outras vezes, o medo de achar a minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria - e pode ser mesmo que em alguma ocasião lhe tivesse ensinado mal -, parece que tal foi a causa da proposta. O pobre-diabo contava com o favor - mas queria assegurar-lhe a eficácia, e daí recorreu à moeda que a mãe lhe dera e que ele guardava como relíquia ou brinquedo; pegou dela e veio
esfregá-la nos joelhos, à minha vista, como uma tentação... Realmente, era bonita, fina, branca, muito branca; e para mim, que só trazia cobre no bolso, quando trazia alguma coisa, um cobre feio, grosso, azinhavrado...

Não queria recebê-la e custava-me recusá-la. Olhei para o mestre, que continuava a ler, com tal interesse, que lhe pingava o rapé do nariz.

- Ande, tome - dizia-me baixinho o filho.

E a pratinha fuzilava-lhe entre os dedos, como se fora diamante... Em verdade, se o mestre não visse nada, que mal havia? E ele não podia ver nada, estava agarrado aos jornais, lendo com fogo, com indignação...

- Tome, tome...

Relanceei os olhos pela sala, e dei com os do Curvelo em nós; disse ao Raimundo que esperasse. Pareceu-me que o outro nos observava, então dissimulei; mas daí a pouco, deitei-lhe outra vez o olho e - tanto se ilude a vontade! - não lhe vi mais nada. Então cobrei ânimo.

- Dê cá...

Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das calças, com um alvoroço que não posso definir. Cá estava ela comigo, pegadinha à perna. Restava prestar o serviço, ensinar a lição, e não me demorei em fazê-lo, nem o fiz mal, ao menos conscientemente; passava-lhe a explicação em um retalho de papel, que ele recebeu com cautela e cheio de atenção. Sentia-se que despendia um esforço cinco ou seis vezes maior para aprender um nada; mas contanto que ele escapasse ao castigo, tudo iria bem.

De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um riso que me pareceu mau. Disfarcei; mas daí a pouco, voltando-me outra vez para ele, achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar, acrescendo que entrava a remexer-se no banco, impaciente. Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário, franziu a testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito.

- Precisamos muito cuidado - disse eu ao Raimundo.

- Diga-me isto só - murmurou ele.

Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, cá no bolso, lembrava -me o contrato feito. Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois, tornei a olhar para o Curvelo, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso, dantes mau, estava agora pior. Não é preciso dizer que também eu ficara em brasas, ansioso que a aula acabasse; mas nem o relógio andava como das outras vezes nem o mestre fazia caso da escola; este lia os jornais, artigo por artigo, pontuando-os com exclamações, com gestos de ombros, com uma ou duas pancadinhas na mesa. E lá fora, no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno papagaio, guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele. Imaginei-me ali, com os livros e a pedra embaixo da mangueira, e a pratinha no bolso das calças, que eu não daria a ninguém, nem que me serrassem; guarda-la-ia em casa, dizendo a mamãe que a tinha achado na rua. Para que me não fugisse, ia-a apalpando, roçando-lhe os dedos pelo cunho, quase lendo pelo tato a inscrição, com uma grande vontade de espiá-la.

- Oh! Seu Pilar! - bradou o mestre com voz de trovão.

Estremeci como se acordasse de um sonho e levantei-me às pressas. Dei com o mestre, olhando para mim, cara fechada, jornais dispersos, e ao pé da mesa, em pé, o Curvelo. Pareceu-me adivinhar tudo.

- Venha cá! - bradou o mestre.

Fui e parei diante dele. Ele enterrou-me pela consciência dentro um par de olhos pontudos; depois chamou o filho. Toda a escola tinha parado; ninguém mais lia, ninguém fazia um só movimento. Eu, conquanto não tirasse os olhos do mestre, sentia no ar a curiosidade e o pavor de todos.

- Então o senhor recebe dinheiro para ensinar as lições aos outros? - disse-me o Policarpo.

- Eu...

- Dê cá a moeda que este seu colega lhe deu! - clamou.

Não obedeci logo, mas não pude negar nada. Continuei a tremer muito. Policarpo bradou de novo que lhe desse a moeda, e eu não resisti mais, meti a mão no bolso, vagarosamente, saquei-a e entreguei-lha. Ele examinou-a de um e outro lado, bufando de raiva; depois estendeu o braço e atirou-a à rua. E então disse-nos uma porção de coisas duras, que tanto o filho como eu acabávamos de praticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo íamos ser castigados. Aqui pegou da palmatória.

- Perdão, seu mestre... - solucei eu.

- Não há perdão! De cá a mão! Dê cá! Vamos! Sem-vergonha! Dê cá a mão!

- Mas, seu mestre...

- Olhe que é pior!

Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns por cima dos outros, até completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas e inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a mesma coisa; não lhe poupou nada, dois, quatro, oito, doze bolos. Acabou, pregou-nos outro sermão. Chamou-nos sem-vergonhas, desaforados, e jurou que se repetíssemos o negócio, apanharíamos tal castigo que nos havia de lembrar para todo o sempre. E exclamava: "Porcalhões! Tratantes! Faltos de brio!"

Eu, por mim, tinha a cara no chão. Não ousava fitar ninguém, sentia todos os olhos em nós. Recolhi-me ao banco, soluçando, fustigado pelos impropérios do mestre. Na sala arquejava o terror; posso dizer que naquele dia ninguém faria igual negócio. Creio que o próprio Curvelo enfiara de medo. Não olhei logo para ele, cá dentro de mim jurava quebrar-lhe a cara, na rua, logo que saíssemos, tão certo como três e dois serem cinco.

Daí a algum tempo olhei para ele; ele também olhava para mim, mas desviou a cara, e penso que empalideceu. Compôs- se e entrou a ler em voz alta; estava com medo. Começou a variar de atitude, agitando-se à toa, coçando os joelhos, o nariz. Pode ser até que se arrependesse de nos ter denunciado; e, na verdade, por que denunciar-nos? Em que é que lhe tirávamos alguma coisa?

"Tu me pagas! Tão duro como osso!", dizia eu comigo.

Veio a hora de sair, e saímos; ele foi adiante, apressado, e eu não queria brigar ali mesmo, na Rua do Costa, perto do colégio; havia de ser na rua larga de S. Joaquim. Quando, porém, cheguei à esquina, já o não vi; provavelmente escondera-se em algum corredor ou loja; entrei numa botica, espiei em outras casas, perguntei por ele a algumas pessoas, ninguém me deu notícia. De tarde faltou à escola.

Em casa não contei nada, é claro; mas para explicar as mãos inchadas, menti a minha mãe, disse-lhe que não tinha sabido a lição. Dormi nessa noite, mandando ao diabo os dois meninos, tanto o da denúncia como o da moeda. E sonhei com a moeda; sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte, dera com ela na rua e a apanhara, sem medo nem escrúpulos...

De manhã, acordei cedo. A idéia de ir procurar a moeda fez-me vestir depressa. O dia estava esplêndido, um dia de maio, sol magnífico, ar brando, sem contar as calças novas que minha mãe me deu, por sinal que eram amarelas. Tudo isso, e a pratinha... Saí de casa, como se fosse trepar ao trono de Jerusalém. Piquei o passo para que ninguém chegasse antes de mim à escola; ainda assim não andei tão depressa que amarrotasse as calças. Não, que elas eram bonitas! Mirava-as, fugia aos encontros, ao lixo da rua...

Na rua encontrei uma companhia do batalhão de fuzileiros, tambor à frente, rufando. Não podia ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo o pé rápido, igual, direita, esquerda, ao som do rufo; vinham, passaram por mim e foram andando. Eu senti uma comichão nos pés, e tive ímpeto de ir atrás deles. Já lhes disse: o dia estava lindo, e depois o tambor... Olhei para um e outro lado; afinal, não sei como foi, entrei a marchar também ao som do rufo, creio que cantarolando alguma coisa: Rato na casaca... Não fui à escola, acompanhei os fuzileiros, depois enfiei pela Saúde e acabei a manhã na Praia da Gamboa. Voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nem ressentimento na alma. E contudo a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da delação; mas o diabo do tambor...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caixinha Mágica

Roseana Murray (novaescola@fvc.org.br)
Caixinha mágica. Ilustração: Ricardo Girotto
Fabrico uma caixa mágica
para guardar o que não
cabe em nenhum lugar:
a minha sombra
em dias de muito sol,
o amarelo que sobra
do girassol,
um suspiro de beija-flor,
invisíveis lágrimas de amor.

Fabrico a caixa com vento,
palavras e desequilíbrio
e, para fechá-la
com tudo o que leva dentro,
basta uma gota de tempo.

O que é que você quer
esconder na minha caixa?

Um encontro fantástico

Ilustração: Ivan Zigg
Ilustração: Ivan Zigg
Todos os anos eles se reuniam na floresta, à beira de um rio, para ver a quantas andava a sua fama. Eram criaturas fantásticas e cada uma vinha de um canto do Brasil. O Saci-Pererê chegou primeiro. Moleque pretinho, de uma perna só, barrete vermelho na cabeça, veio manquitolando, sentou-se numa pedra e acendeu seu cachimbo. Logo apontou no céu a Serpente Emplumada e aterrissou aos seus pés. Do meio das folhagens, saltou o Lobisomem, a cara toda peluda, os dentes afiados, enormes. Não tardou, o tropel de um cavalo anunciou o Negrinho do Pastoreio montado em pêlo no seu baio.

- Só falta o Boto - disse o Saci, impaciente.

- Se tivesse alguma moça aqui, ele já teria chegado para seduzi-la - comentou a Serpente Emplumada.

- Também acho - concordou o Lobisomem. - Só que eu já a teria apavorado.

Ouviram nesse instante um rumor à margem do rio. Era o Boto saindo das águas na forma de um belo rapaz.

- Agora estamos todos - disse o Negrinho do Pastoreio.

- E então? - perguntou o Boto, saudando o grupo. - Como estão as coisas?

- Difíceis - respondeu o Saci e soltou uma baforada. - Não assustei muita gente nesta temporada.

- Eu também não - emendou a Serpente Emplumada. - Parece que as pessoas lá no Nordeste não têm mais tanto medo de mim.

- Lá no Norte se dá o mesmo - disse o Boto. - Em alguns locais, ainda atraio as mulheres, mas em outros elas nem ligam.

- Comigo acontece igual - disse o Negrinho do Pastoreio. - Vivo a achar coisas que as pessoas perdem no Sul. Mas não atendi muitos pedidos este ano.

- Seu caso é diferente - disse o Lobisomem. - Você não é assustador como eu, o Saci e a Serpente Emplumada. Você é um herói.

- Mas a dificuldade é a mesma - discordou o Negrinho do Pastoreio.

- Acho que é a concorrência - disse o Boto. - Andam aparecendo muitos heróis e vilões novos.

- Pois é - resmungou a Serpente Emplumada. - Até bruxas andam importando. Tem monstros demais por aí...

- São todos produzidos por homens de negócios - disse o Saci. - É moda. Vai passar...

- Espero - disse o Lobisomem. - Bons aqueles tempos em que eu reinava no país inteiro, não só no cerrado.

- A diferença é que somos autênticos - disse o Negrinho do Pastoreio. - Nós nascemos do povo.

- É verdade - disse o Boto. - Mas temos de refrescar a sua memória.

- Se pegarmos no pé de uns escritores, a coisa pode melhorar - disse a Serpente Emplumada.

- Eu conheço um - disse o Saci. - Vamos juntos atrás dele! - E foi o primeiro a se mandar, a mil por hora, em uma perna só.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sonhos

Ilustração: Renato Mariconi
Ilustração: Renato Mariconi
Finalmente os computadores chegaram à escola. Os alunos olhavam para eles com orgulho,
curiosidade e respeito.
Naquela noite, Marilena foi dormir feliz. Muito romântica, sonhava com um príncipe encantado e, para ela, o computador era como um super-herói. Acreditava que ele transformaria sua vida.
"Mas como? Não entendo nada de computação..." — pensou, insegura. E, para espantar a preocupação, virou-se na cama.
De repente, ouviu um ruído estranho. Olhou para o canto do quarto e... iluminado por uma luz azulada, lá estava ele: o computador. Intrigada, a menina levantouse, aproximou-se, pé ante pé, e qual não foi seu espanto quando surgiu na tela do monitor um jovem simpático
que foi se apresentando:
— Oi, Marilena! Prazer, eu sou o S.O.
— Oi! - respondeu ela, bastante surpresa. E pensou: "S.O.? Só espero que não seja de Serapiano Osmundo..."
Como se tivesse adivinhado, o rapaz explicou:
— S.O., de "Sistema Operacional", viu? E foi você mesma quem me escolheu...
Sorrindo ao perceber o olhar de espanto da garota, S.O. completou: - ...para coordenar os trabalhos aqui.
A menina sorriu encabulada e tentou fingir que sabia da existência de outros "sistemas operacionais" e da possibilidade de escolher entre eles. Depois, resolveu confessar:
— É, é... que eu nunca tive um - gaguejou ela.
E comentou, preocupada:
— Computador... parece só para homem...
Aí foi a vez de S.O. ficar admirado:
— Para homem? Você nunca ouviu falar de Ada Lovelace?
Em meados do século 19, Ada criou o primeiro programa de computador. Ela foi a primeira programadora do mundo!
— Nessa época já existia computador? - perguntou a menina, surpresa.
— Bem, computador, computador... - hesitou ele. - Os programas de Ada eram pra ser usados num avô dos micros... um precursor do computador, planejado por Charles Babbage, um matemático e cientista meio maluco.
E o rapaz acrescentou com um olhar sedutor:
— Dizem que eles eram apaixonados.
Para Marilena, descortinaram-se novas perspectivas.
E ela sorriu.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sebastião e Danilo

Ilustração: Rogério Fernandes
Enquanto no resto do mundo os sapos comiam os grilos e os grilos fugiam dos sapos, os dois viviam muito bem, obrigado, e eram felizes.

A verdade é que Sebastião e Danilo eram amigos com muitas coisas em comum. Os dois eram verdes. Os dois viviam saltando. Os dois adoravam plantas de folhas largas. Os dois viviam na beira da mesma lagoa. Os dois adoravam cantar à noite.

Aliás, foi essa história de soltar a voz que fez os dois ficarem famosos.

Em noite de lua clara, vinha a bicharada toda para ouvir a cantoria. A coruja lá no alto da árvore, os peixinhos dentro da lagoa. Os bois bem grandes e fortes, os mosquitinhos pequenininhos. A lesma bem devagar e os coelhinhos correndo, correndo.

Só que o sucesso era tanto que logo começou a confusão. Teve uma noite em que as libélulas, apaixonadas pelo grilo, começaram a gritar: "Danilo! Danilo! Danilo!"

Os jacarés, que eram fãs do sapo, ficaram com muita raiva daquilo e logo puxaram o coro: "Sebastião! Sebastião! Sebastião!"

A coisa foi esquentando e logo os bichos estavam divididos. Meio a meio, um tanto de cada lado. De uma hora pra outra começou a briga.

Era pena voando daqui, água espirrando dali, miados, mugidos, piados, latidos, rosnados, tudo numa bagunça tão grande que ninguém escutava mais a música.

No meio daquilo tudo, Sebastião e Danilo saíram de mansinho e nunca mais voltaram àquela lagoa, para a tristeza da bicharada.

Mas se você for com cuidado, sem fazer nenhum barulho, em um certo brejo não muito longe dali, vai ouvir bem baixinho, quase um sussurro, a música mais bonita daquela região. Sem público, nem confusão, os dois continuam juntos, amigos, uma dupla de verdade. Cantando sempre, só mesmo porque cantar é muito bom.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Se assim é, assim será?

Silvinha Meirelles (novaescola@fvc.org.br)
Ilustração: Ana Raquel
Ilustração: Ana Raquel
Tudo era bem normal lá em Santantônio da Lamparina.

As crianças iam para a escola enquanto os pais trabalhavam. Todos riam, se divertiam e às vezes ficavam bem tristes também. Tomavam banho, soltavam pum e tinham coceira no pé, como toda gente em qualquer parte.

Só tinha um detalhe, mínimo, insignificante, que deixava tudo com cara de esquisito e diferente: lá, o dia era escuro como a noite, e quando era noite era noite também.

Os moradores estavam acostumados. Viviam à sombra da Lua, estudavam à luz de abajur, sabiam brincadeiras de escuro: gato-mia, cabra-cega, detetive...

Os mais velhos diziam que lá sempre foi assim e que, se é assim, assim será até o fim. Sentiam-se cansados de imaginar como seria viver num lugar claro e diferente. Os mais jovens sonhavam e diziam que conhecer o Sol era o maior desejo que tinham no mundo, no universo. Um desejo infinito.

Por que ninguém pensava em se mudar dali? Porque lá havia o mais lindo luar e o mais delicioso banho de mar e um povo com um sonho em comum. Às vezes, coisas assim são suficientes para nos fazer ficar.

Num dia noite, chegou um, chegaram dois e mais três ou cinco equilibristas. Era uma família de artistas! Enquanto uns tocavam, os outros faziam lances incríveis, coisa de especialista!

Há muito tempo o vilarejo não recebia visita tão animada. Os equilibristas estavam acostumados a se apresentar até o Sol raiar e estranharam: já se sentiam cansados e nada de o dia clarear.

- O Sol não vai aparecer?

E foi assim que souberam que em Santantônio da Lamparina o dia era tão escuro como a noite e que já estavam acordados fazia dois dias e meio.

- Daí o nome da cidade?

- Daí o nome.

- Mas por que é assim?

- Diz meu avô que o avô dele dizia que o seu tataravô ensinou que é assim porque sempre foi assim e assim será até o fim!

Os artistas acharam aquela explicação meio fraquinha, de quem já cansou de procurar solução. Avisaram que por cinco dias escuros e quatro noites noites treinariam um novo número exclusivo e então voltariam para o espetáculo de despedida!

Voltaram.

Voltaram com o número mais arriscado e sensacional de equilíbrio, coragem e precisão já visto em toda a história da humanidade!

Precisaram de muita concentração. Foram subindo, um sobre o outro e sobre o outro e sobre o outro e sobre outro ainda... Até que o menino equilibrista mais levinho e muito craque, com o braço bem esticado, atingiu o céu. Com a ponta do dedo fez um picote. Um pequeno rasgo no céu, por onde passou um facho de luz.

Era mínimo, mas suficiente para iluminar de alegria e expectativa cada santantonio- lamparinense. Podiam saber como era o Sol, a luz e o calor que vinham do céu.

Devagar o rasgo foi aumentando, sozinho, como furo de meia velha, que vai crescendo até virar um rombo...

E um dia, Santantônio da Lamparina amanheceu toda e completamente iluminada! Os moradores, que nem tinham venezianas e cortinas, acordaram sobressaltados com tanta luz.

Festejaram até o Sol raiar outra vez.

Até hoje, não se cansam de ver o Sol nascer e depois o Sol se pôr e de novo o Sol nascer e mais uma vez o Sol se pôr. Acham graça, agradecidos.

 

 

 

 

 

Recado de fantasma

Ilustração: Rogério Nunes
Ilustração: Rogério Nunes
Tudo começou quando nos mudamos para aquela casa. Era um antigo sobrado, com
uma grande varanda envidraçada e um jardim. Eu me sentia tão feliz em morar num lugar espaçoso como aquele, que nem dei atenção aos comentários dos vizinhos, com quem fui fazendo amizade. Eles diziam que a casa era mal-assombrada. Alguns afirmavam ouvir alguém cantando por lá às sextas-feiras.
- Deve ser coisa de fantasma! - falavam.
- Se existe, nunca vi! - E então contava a eles que as casas antigas, como aquela, com revestimentos e assoalho de madeira, estalam por causa das mudanças de temperatura. Isso é um fenômeno natural, conforme meu pai havia me explicado. Mas meus amigos não se convenciam facilmente. Apostavam que mais dia menos dia eu levaria o maior susto.
Certa noite, três anos atrás, aconteceu algo impressionante. Meus pais haviam saído e eu fiquei em casa com minha irmã, Beth. Depois do jantar, fui para o quarto montar um quebra-cabeça de 500 peças, desses bem difíceis. Faltava um quarto para a meia-noite. Eu andava à procura de uma peça para terminar a metade do cenário quando senti um ar gelado bem perto de mim. As peças espalhadas pelo chão começaram a tremer. Vi, arrepiado, cinco delas flutuarem e depois se encaixarem bem no lugar certo. Fiquei tão assustado que nem consegui me mexer. Só quando tive a impressão de ouvir passos se afastando é que pude gritar e sair correndo escada abaixo. Minha irmã tentou me acalmar, dizendo que tudo não passava de imaginação, mas eu insisti e implorei que ela viesse até o quarto comigo. Uma segunda surpresa me esperava: o quebra-cabeça estava montado, formando a imagem de uma casa com um jardim bem florido. No entanto, meu jogo formava o cenário de uma guerra espacial, eu tinha certeza!
No dia seguinte, fui até a biblioteca pesquisar o tema. Eu e Beth encontramos dúzias de livros que tratavam de fatos extraordinários e aparições. E a explicação para eventos desse tipo foi a seguinte:
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Hoje minha casa tem o jardim mais bonito da rua. Centenas de lindas margaridas brancas florescem a maior parte do ano (para total espanto da vizinhança). O fantasma? Nunca mais vi. Decerto passeia feliz pelo jardim, nas noites de lua cheia.
*Espaço reservado para a imaginação da turminha

 

 

 

 

Perdidos na excursão

Fanny Abramovich (novaescola@fvc.org.br)
Ilustração: Biry
Ilustração: Biry  
Marquito desabou na poltrona. Completamente moído. Exausto! Agarrou o telefone, ligou pro Tiagão. Dos dois lados do fio, só queixas e reclamações. E altos xingos.

Bocas raivosas, por nada ter dado certo. Só confusão durante a excursão inteira.

Marquito relembrou a saída orgulhosa. Um final de semana ecológico-aventureiro. Certeza de voltar triunfantes! Muito pra contar e pra exibir. Turma animada e a fim de descobrir o esconderijo-paraíso dos micos-leões-dourados. Tiagão ouvia rindo. Logo enfezou. Lembrou da primeira desviada. Um caminho lindo que deu numa cachoeira despencante. Puladas, procuras, nadadas, volta estropiada pra estrada arrebentada... Depois, só mancadas... A chuva desviante da trilha. A paralisada hesitante se era
pra virar à direita ou à esquerda. Os em-frente-marche dando em barreiras fechadas, sem brecha pra passagem. As voltas, semivoltas, voltas inteiras. A parada pra comilança quase dentro duma fazenda murada e o dono surgindo com as armas em punho... Horror total!!

Marquito parou de sorrir. Partiu pros desabafos gritados. A armação das tendas no escuro e a descoberta rápida de o lindo lugar estar cercado de cobras... Berros desesperados! O dar de cara com uma margem do rio sem nenhuma ponte para cruzar... O medaço de se afogar atravessando a pé.

Tiagão espirrou. Gripou bravo. Desligou avisando que foi a primeira e última excursão ecológica. Pra ele, fim de papo. Marquito resmungou enfezado. Jurou jurado. Outra, só sabendo antes por onde ia pisar. Chegava de perder tempo, perder a paciência, perder o ânimo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Para contar estrelas

Dieter Mandarin (novaescola@fvc.org.br)

Ilustração Alexandre Camanho

-Pai, como é que a gente conta estrelas do céu?, perguntou Lelê. O pai, baixando o jornal, foi logo fazendo pose de explicação.

- Bem, existem equipamentos especiais para isso. Eles tiram fotos do céu e fazem medições. E tem o Hubble, que é o bambambã dos telescópios! Mas só os cientistas podem usá-lo. Então, cada um conta com o que tem à mão.

- Ah!, disse Lelê com admiração, mesmo sem ter entendido muito bem (ele ainda estava no segundo ano).

A mãe o chamou na cozinha para um lanche. Ele se sentou à mesa pensando ainda no que o pai tinha dito. Decidiu perguntar para ela também.

- Isso seu pai deve saber. Por que não pergunta para ele?

- Já perguntei. Ele falou várias coisas, mas não entendi direito: o que cada um tem nas mãos e...

- Ora, nas mãos a gente tem dedos! Por que você não conta nos dedos?, disse a mãe, que era bem mais esperta que o pai nos assuntos práticos.

- Hum..., pensou Lelê. Assim eu sei! E foi logo devorando o sanduíche.

Uns minutinhos depois, Lelê já estava no quintal. Olhava para o alto, bem fundo no céu de estrelas. Para começar, mirou a mais brilhante e passou a contar em voz alta: Um... Dois... Três..., recolhendo um dedo de cada vez. Chegou até dez. Olhou para as mãos, olhou para o céu.

Suspirou. O problema é que ele tinha só dez dedos, e o céu tinha muito mais estrelas.

Desanimado, sentou-se na varanda, apoiando o queixo nas mãos.

Sua avó, que sempre observava tudo bem quietinha, foi lá falar com ele.

- O que foi, filho?

- Nada...

- Hum. Sabe, eu conheço um jeito de fazer caber todas as estrelas na mão, de uma só vez.

Lelê olhou desconfi ado, mas fi cou atento, esperando o resto da história.

- Está vendo as estrelas lá em cima? São tão pequenininhas, não é mesmo? Pois então. Basta você olhar bem para elas, como se fossem grãozinhos de areia. Daí você passa a mão, assim, por todo o céu, como se estivesse varrendo, e fecha de uma vez no fi nal! Depois, chacoalha bem e põe em cima do coração, pegando emprestado um pouco da luz delas.

Ela deu então uma piscadela e foi se levantando para entrar em casa.

Lelê percebeu uma emoção estranha no peito, sentiu uma saudade imensa da avó, queria que ela morasse com ele para sempre.

Desde então, sempre que tinha vontade, Lelê contava todas as estre

O tesouro no quintal


Ilustração: Alexandre Camanho
Ilustração: Alexandre Camanho
Era uma família grande, a nossa: pai, mãe, cinco filhos. Grande e pobre. Papai, pedreiro, mal conseguia nos sustentar. Mamãe ajudava como podia, fazendo faxinas e costurando para fora, mas mesmo assim a vida era bastante difícil. Papai vivia bolando formas de reforçar nosso orçamento doméstico ou de, pelo menos, diminuir as despesas. Foi assim que lhe ocorreu a idéia da horta.

Morávamos numa minúscula casa de subúrbio, não longe de uma bela praia, que, contudo, raramente freqüentávamos: era lugar de ricos. Casa pobre, a nossa, sem nenhum conforto. Mas, por alguma razão, tinha um quintal bastante grande. Do qual, para dizer a verdade, não cuidávamos. O capim ali crescia viçoso e no meio dele jaziam, abandonados, pneus velhos, latas, pedaços de tijolos e telhas. Papai olhava para aquilo, pesaroso: parecia-lhe um desperdício de espaço e de terra. Um dia chamou os dois filhos mais velhos, meu irmão Pedro e eu próprio, e anunciou: vamos fazer uma horta neste quintal.

Proposta mais do que adequada. Nós quase não comíamos legumes e verduras, porque eram muito caros. Mas, se plantássemos ali tomate, alface, agrião, cenoura, teríamos uma fonte extra de alimento - e o mais importante, sem custo.

Sem custo, mas não sem trabalho. Para começar, teríamos de capinar aquilo tudo e revirar a terra para depois plantar e colher. Meu pai não hesitou: vocês dois, que são os mais velhos, vão fazer isso.

Não gostamos muito da determinação. Não éramos preguiçosos, mas preparar a terra para fazer uma horta não era bem o nosso sonho e representaria um grande esforço. Contudo, não tínhamos alternativa. Quando papai dava uma ordem, era para valer. E, no caso, ele tinha o decidido apoio da mamãe, que era de uma família de agricultores e gostava de plantar.

Quem prepararia a terra? Foi a pergunta que fiz ao Pedro, que, além de mais velho, era o líder entre os irmãos. Pergunta para a qual ele já tinha a resposta:

- Isso é coisa para o Antônio.

Antônio era o irmão do meio. Com 9 anos, era um menino quieto, sonhador. Mas não era muito do batente, de modo que fiquei em dúvida: como convencêlo a fazer o trabalho?

- Deixa comigo - disse Pedro, que se considerava muito esperto. - Eu sei como convencer o cara.

E sabia mesmo. Porque Pedro era dono de uma lábia fantástica, argumentava como ninguém. Ah, sim, e sabia contar histórias - inventadas por ele, claro. Era com uma história que pretendia motivar o Antônio a capinar o pátio.

Eu estava junto, quando ele contou a tal história. Era uma boa história: segundo um famoso professor, séculos antes piratas franceses haviam andado pela nossa região
e ali haviam enterrado um tesouro. Expulsos pelos portugueses, nunca mais tinham retornado, de modo que a arca com jóias e moedas de ouro ainda estava no mesmo lugar,
que podia ser o pátio de nossa casa.

- O tesouro será a nossa salvação - concluiu Pedro , entusiasmado.

Antônio estava impressionado. Se havia coisa em que acreditava, era em histórias. Aliás, estava sempre lendo - era o maior freqüentador da biblioteca do colégio.

- Quem sabe procuramos esse tesouro? - perguntou ele.

Era exatamente o que Pedro queria ouvir.

- Se você está disposto, eu lhe arranjo uma enxada...

Antônio mostrava-se mais do que disposto. No dia seguinte, um feriado, lá estava ele, enxada em punho, cavando a terra, diante do olhar admirado da família. Papai até perguntou o que tinha acontecido.

- Ele se ofereceu para fazer o trabalho - disse Pedro, dando de ombros.

Para encurtar a história: tesouro algum apareceu, mas, um mês depois, tínhamos uma horta no quintal. Antônio acabou descobrindo a trama de Pedro, mas não ficou zangado. Inspirado pelo acontecimento, escreveu uma história, com a qual ganhou um prêmio literário da prefeitura. Uma boa grana, que ele usou para comprar livros. Hoje é um conhecido jornalista e escritor. Acho que ele acabou, mesmo, encontrando o tesouro.

 

 

 

 

 

O Grande Encontro

Silvana Tavano (novaescola@fvc.org.br)

Ilustração: Sandro Castelli
Ilustração: Sandro Castelli
Era uma vez um Autor com uma vaga ideia para uma nova história. E como nessa história tinha vaga de verdade para um grande Personagem, pensou em começar sua busca colocando um anúncio no jornal.

"Procura-se um Personagem disposto a viver aventuras eletrizantes. Não é necessário ter experiência no tema, mas algumas características serão especialmente consideradas: um certo preparo físico, raciocínio rápido e personalidade carismática."
O primeiro candidato a se apresentar foi logo dizendo:
- Participei de passagens importantes de muitos livros famosos, imortalizados por personagens estrelados.
- Ah, parabéns! O senhor tem razão. Os grandes personagens não envelhecem. Mas, se entendi bem, o senhor nunca foi o protagonista desses enredos, certo? Enfim... É uma pena, mas um coadjuvante de idade avançada não é o que busco. Desculpe!
Dois dias e muitas páginas amassadas depois, o Autor recebe outro candidato - um tipo muito sincero, mas bastante imaturo.

  -Já passei por muitas imaginações, mas...

 - Mas?

  -Nunca cheguei ao papel...

- Ah...

- Tenho muito potencial, mas...

- Mas?

- Preciso de alguém que acredite em mim, que me decifre e me revele com todas as letras, entende?

- Você é muito interessante. Mas...

Na semana seguinte, com a cabeça embaralhada e ainda sem um herói à vista, o Autor começa a pensar em outras possibilidades e, repentinamente, tem uma grande ideia: e se o narrador transformasse a própria aventura em Personagem? Animado, ele já ia colocar o texto em ação quando o telefone toca.

- Bom dia. Posso falar com o Autor?

- E o senhor é...?

- O Personagem.

- Ah, claro, o anúncio...

- Exato, o anúncio. Muito bem escrito, por sinal.

- ...?

- Quantos livros o senhor publicou?

- ... !?!

- Alô? Alô, o senhor está na linha?

- Sim... Claro, estou ouvindo... Continue, por favor!

- Desculpe! Espero que não me leve a mal, mas preciso saber um pouco mais sobre o seu estilo, como é o seu processo criativo, quais gêneros o senhor domina, se tem livros premiados... É que não me encaixo com naturalidade em qualquer texto. Tenho que sentir alguma consistência literária, entende?

O Autor experimentou vários estados de espírito. No início, ficou atônito. Mais que isso, catatônico! Depois, a palavra certa seria "irritado". Mas, pouco a pouco, foi se sentindo, como dizer?, impressionado! Pois, à medida em que respondia às perguntas do Personagem, foi se surpreendendo mais e mais com suas próprias palavras.

No dia seguinte, conversaram de novo. E no outro, outra vez.

Trocaram ideias durante tanto tempo que acabaram se tornando grandes amigos. Anos depois, eram tão íntimos que um logo adivinhava o que o outro tinha acabado de pensar e, juntos, inventaram histórias fabulosas.

 

 

 

O caso do espelho


Ilustração: Alarcão
Ilustração: Alarcão
Era um homem que não sabia quase nada. Morava longe, numa casinha de sapé esquecida nos cafundós da mata.

Um dia, precisando ir à cidade, passou em frente a uma loja e viu um espelho pendurado do lado de fora. O homem abriu a boca. Apertou os olhos. Depois gritou, com o espelho nas mãos:

- Mas o que é que o retrato de meu pai está fazendo aqui?

- Isso é um espelho - explicou o dono da loja.

- Não sei se é espelho ou se não é, só sei que é o retrato do meu pai.

Os olhos do homem ficaram molhados.

- O senhor... conheceu meu pai? - perguntou ele ao comerciante.

O dono da loja sorriu. Explicou de novo. Aquilo era só um espelho comum, desses de vidro e moldura de madeira.

- É não! - respondeu o outro. - Isso é o retrato do meu pai. É ele, sim! Olha o rosto dele. Olha a testa. E o cabelo? E o nariz? E aquele sorriso meio sem jeito?

O homem quis saber o preço. O comerciante sacudiu os ombros e vendeu o espelho, baratinho

Naquele dia, o homem que não sabia quase nada entrou em casa todo contente. Guardou, cuidadoso, o espelho embrulhado na gaveta da penteadeira.

A mulher ficou só olhando.

No outro dia, esperou o marido sair para trabalhar e correu para o quarto. Abrindo a gaveta da penteadeira, desembrulhou o espelho, olhou e deu um passo atrás. Fez o sinal da cruz tapando a boca com as mãos. Em seguida, guardou o espelho na gaveta e saiu chorando.

- Ah, meu Deus! - gritava ela desnorteada. - É o retrato de outra mulher! Meu marido não gosta mais de mim! A outra é linda demais! Que olhos bonitos! Que cabeleira solta! Que pele macia! A diaba é mil vezes mais bonita e mais moça do que eu!

- Quando o homem voltou, no fim do dia, achou a casa toda desarrumada. A mulher, chorando sentada no chão, não tinha feito nem a comida.

- Que foi isso, mulher?

- Ah, seu traidor de uma figa! Quem é aquela jararaca lá no retrato?

- Que retrato? - perguntou o marido, surpreso.

- Aquele mesmo que você escondeu na gaveta da penteadeira!

O homem não estava entendendo nada.

- Mas aquilo é o retrato do meu pai! Indignada, a mulher colocou as mãos no peito:

- Cachorro sem-vergonha, miserável! Pensa que eu não sei a diferença entre um velho lazarento e uma jabiraca safada e horrorosa?

A discussão fervia feito água na chaleira.

- Velho lazarento coisa nenhuma! - gritou o homem, ofendido.

A mãe da moça morava perto, escutou a gritaria e veio ver o que estava acontecendo. Encontrou a filha chorando feito criança que se perdeu e não consegue mais voltar pra casa.

- Que é isso, menina?

- Aquele cafajeste arranjou outra!

- Ela ficou maluca - berrou o homem, de cara amarrada.

- Ontem eu vi ele escondendo um pacote na gaveta lá do quarto, mãe! Hoje, depois que ele saiu, fui ver o que era. Tá lá! É o retrato de outra mulher!

A boa senhora resolveu, ela mesma, verificar o tal retrato.

Entrando no quarto, abriu a gaveta, desembrulhou o pacote e espiou. Arregalou os olhos. Olhou de novo. Soltou uma sonora gargalhada.

- Só se for o retrato da bisavó dele! A tal fulana é a coisa mais enrugada, feia, velha, cacarenta, murcha, arruinada, desengonçada, capenga, careca, caduca, torta e desdentada que eu já vi até hoje!

E completou, feliz, abraçando a filha:

- Fica tranqüila. A bruaca do retrato já está com os dois pés na cova!

 

 

 

Nino quer um amigo

Ilustração: Sérgio Ramos
Ilustração: Sérgio Ramos
Nino, por que você está sempre tão sério e cabisbaixo?

Nino vivia triste. Ele se sentia sozinho. Ninguém queria ser amigo dele.

Pobre Nino.

Um dia, na praia, ele ficou esperançoso de encontrar um amigo.

- Ah, um menino. Quem sabe..., e tentou chegar perto dele.

Mas o menino virou para o lado, cavou um buraco.

E ainda jogou areia no Nino.

Coitado dele.

Outro dia, na escola, ele tentou puxar conversa com uma colega de turma. Olhou para a menina, que era toda sardenta, uma graça. Esboçou um sorriso e tentou puxar assunto.

Mas estava tão acostumado a ficar calado e sério que as palavras demoraram a sair de sua boca.

A menina bonitinha desistiu de esperar que ele dissesse alguma coisa. Virou-se de costas e foi brincar com uma amiga.

Tadinho do Nino.

Nem os animais pareciam querer ser seus amigos.

Uma tarde, Nino viu um menino com um cão passeando na praça.

Ficou com vontade de agradar o cachorro, mas ficou com medo de que ele mordesse.

Fez um agrado bem tímido.

O cão nem aí para ele.

Que pena, Nino.

Até que um dia, ele tinha desistido de procurar.

Pensando em por que, quanto mais tentava encontrar um amigo, mais sozinho se sentia...

Ficou distraído, pensando, e adormeceu.

Quando acordou, olhou-se no espelho.

Enquanto escovava os dentes, percebeu que fazia muitas caretas.

Achou engraçado. Enxaguou a boca e continuou brincando com o espelho.

Era riso daqui, riso de lá. Era língua do Nino e língua do espelho. Piscadela aqui, piscadela ali. Começou ali uma verdadeira folia. Era um jogo de reconhecimento entre Nino e sua imagem no espelho. E não é que Nino era bem engraçadinho? Ele mesmo nunca tinha reparado nisso antes.

Que cara legal era o Nino.

Que garoto charmoso, bem-humorado!

Nino ficou encantado com seu espelho.

Fez-se ali uma grande amizade.

E depois dessa amizade surgiram muitas outras.

Nino hoje é um cara cheio de grandes amigos. Incluindo ele mesmo.

Valeu, Nino.

 

 

 

 

 

 

Não somos figurinhas

Claudia Werneck (novaescola@fvc.org.br)
Ilustração: Orlando
Ilustração: Orlando
Uma menina muito ressabiada. Era como se tivesse medo de gente. Família, padrinhos, vizinhos e professores não conseguiam entender o que a impedia de viver em paz com seus iguais.

"Mas o problema é justamente esse", gesticulava ela, amaciando com seus dedinhos o pêlo macio de seu gato magro, branco e preto - o Bandidão. "Não somos iguais, não somos iguais, é tudo mentira. Eu olho para a Pati, o Ivan, o Ademir, a Tatá e só vejo diferenças."

Os adultos se entreolhavam desanimados e pediam mais explicações. "Como diferentes, minha filha? Somos seres humanos, gente igual a você, iguais entre nós: duas pernas, dois bracinhos, dois olhos, uma língua, um cérebro, dez dedos na mão, dez no pé..."

Bandidão não estava nem aí para aquela conversa sempre tão óbvia. Entediado, deu um pinote, abandonando o colo de sua dona. Mas, ainda no ar, enquanto preparava suas patas para uma aterrissagem em segurança, ouviu sair dos lábios dela, também como um pinote, algo que a garota nunca havia dito: "E quem não tem duas pernas? Ou não escuta? Ou tem dois olhos, mas um é de vidro? Ou é muito feio? Aí não é gente? Para ser gente não basta nascer? E os bebês, não são diferentes? Por que vocês insistem em me convencer de que somos iguais? Gente não é como figurinha, que nós arrumamos em fila, deixando de lado as amassadas e as rasgadas para decidir o que fazer com elas depois".

Bandidão estava emocionado. Entendera tudo, ora pois pois. A menina não tinha medo de gente. Acuada, sofria por outras razões. Faltava-lhe era coragem para discordar do pensamento dos adultos.

Confiante por ter conseguido, enfim, explicar sua angústia para os pais, ela experimentou uma sensação nova: sentiu pressa, muita pressa de ir para a escola. Pela primeira vez, sentia prazer em ser gente. Dedicou um último olhar de amor para Bandidão e seguiu pela rua.

 

 

 

 

 

 

Casa de Vô

Beatriz Vichessi (bvichessi@fvc.org.br)
Ilustração: Mateus Rios
Ilustração: Mateus Rios
Todo avô toma remédio, usa dentadura e tira soneca depois do almoço. O meu, não.
Não toma pílula nem xarope. E, à tarde, fica acordado, brincando comigo. Dentadura? Isso ele usa. Mas, de resto, é diferente.
Minha avó também não é igual as outras. Enquanto toda avó borda e faz bolo de chocolate, ela só costura para fazer remendos nas roupas e só cozinha no fim de semana. E quase nunca está em casa. De calça comprida (enquanto todas as avós do mundo usam saia), sai cedinho para trabalhar e nos deixa sozinhos.
Daí, o guarda-roupa dela vira elevador. Basta eu entrar e me sentar nas caixas de sapatos para vovô encostar as portas e, como ascensorista, anunciar:
- Primeiro andar! Roupas e bonecas. Segundo andar! Balas de goma, móveis e crianças perdidas...
A parede da sala é transformada em galeria de arte com pinturas emolduradas em fita crepe e, o tapete, em tablado de exposição de botões raros, que jamais combinariam com qualquer roupa normal.
Ao cair da tarde, na garagem vazia, enquanto o papagaio e os cachorros conversam misturando latidos, uivos e risadas, ele espalha alguns pedacinhos de papel pelo chão. É a brincadeira do Pisei.
- Hã? Como assim?, pergunto. Essa é nova.
Vovô explica sua invenção:
- Memorize onde estão os papéis. Feche os olhos e comece a caminhar. Tente pisar em cima deles. Pode ir perguntando "Pisei?" para facilitar. Ganha o jogo quem pisar em mais pedaços.
Eu começo.
- Pisei?, pergunto, dando o primeiro passo, apertando os olhos.
- Não!
- Pisei?, insisto mais uma vez, depois de caminhar um tiquinho.
- Não!
Ouço um barulho de chaves. Vovó chega, cansada, do trabalho. Diz "Oi". Sei que é para mim, mas não posso abrir os olhos para responder. É quebra de regra.
- Tudo bem, vó? Quer brincar de Pisei?, convido.
- Agora, não, minha riqueza. Vovó vai descansar.
Vovô continua a me guiar, já sentado na cadeira de praia, lendo o jornal. Não vi, mas escutei o barulho dela sendo armada e das folhas nas mãos dele.
Sigo.
- Pisei?
- Pisei?
- Pisei?
E nada.
Sinto meus pés tropeçarem em algo. Abro os olhos. Vovô, a minha frente, de braços abertos, pronto para um abraço de vitória.
- Mas eu não pisei em nenhum papelzinho, vô, digo, meio desanimada, mas já engalfinhada e feliz, nos braços dele.
- O vento foi levando tudo para o cantinho do portão, ele explica, sorrindo.
- E por que o senhor não me avisou? A gente poderia ter colado os pedacinhos no chão e recomeçado...
- Porque eu queria que a brincadeira terminasse com você perto de mim.

 

 

 

 

Amplexo

Ilustração: Marcelo Cipis
Mãe, me dá um amplexo?
A pergunta pega Cinira desprevenida. Antes que possa retrucar, ela nota o dicionário na
mão do filho, que completa o pedido:

- E um ósculo também.
Ainda surpresa, a mulher procura no livro a definição das duas estranhas palavras. E encontra. Mateus quer apenas um abraço e um beijo.

Conversa vai, conversa vem, Cinira finalmente se dá conta de que o garoto, recém-apresentado às classes gramaticais nas aulas de Português, brinca com os sinônimos. "O que vai ser de mim quando esse tiquinho de gente cismar com parônimos, homônimos, heterônimos e pseudônimos?", pensa ela, misturando as estações. "Valha-me, Santo Antônimo!" E emenda:

- Pára com essa bobagem, menino!

- Ah, mãe, o que é que tem? Você nunca chamou cachorro de cão? E casa de residência? E carro de automóvel?

- É verdade, mas...

Mas a verdade é que Cinira não tem uma boa resposta.

- E meu nome é Mateus - continua o rapaz. - Só que você me chama de Matusquela.

- Ei, isso não vale. Matusquela é apelido carinhoso.

- Sei, sei. Tudo bem se eu usar nosocômio e cogitabundo em vez de hospital e pensativo?
E criptobrânquio no lugar de mutabílio?

- Mutabílio? O que é que é isso?

- O mesmo que derotremado, ora. Tá aqui no Aurélio.

Está mesmo. É um bichinho. Mas pouco importa. A mãe questiona a opção do menino por vocábulos incomuns. Mateus sai-se com esta:

- A professora disse que aprender palavras é como ganhar roupas e guardar numa gaveta. Quando a gente precisa delas, tira de lá e usa. Cada uma serve para uma ocasião, por mais esquisita que pareça. Igual à querê-querê roxa que você me deu no último aniversário. Lembra?

Como esquecer? Cinira nem se dá ao trabalho de consultar o dicionário. Sabe que a explicação para essa última provocação está no verbete camiseta.

 

 

 

 

 

A luva


Ilustração: Maria Eliana Delarissa
Foi nos tempos distantes do amor cortês. No reino medieval do rei Franz era dia de festa, e o ponto alto das festividades era a exibição de feras selvagens, trazidas de terras distantes, na arena do grande castelo. Em volta da arena erguiam-se as arquibancadas, encimadas por altos balcões onde brilhavam os nobres da corte, ao lado das belas damas faiscantes de jóias. Entre elas se destacava a donzela Cunegundes, tão rica e formosa quanto orgulhosa, e de pé ao seu lado estava o seu apaixonado adorador, o jovem cavaleiro Delorges, cujo amor ela desdenhava, distante e fria.

Chegou a hora do início da função. A um sinal do rei, abriu-se a porta da primeira jaula, da qual saiu, majestoso, um feroz leão africano e, sacudindo a juba dourada, deitou-se na areia, preguiçoso. Abriu-se a segunda jaula, liberando um terrível tigre de Bengala, que encarou o leão com olhos ameaçadores e deitou-se também, tenso, como quem prepara um bote mortal. Em seguida, abriu-se a terceira jaula, da qual saltaram, quais enormes gatos negros, duas panteras de dentes arreganhados, deitando-se agachados e aumentando a tensão do ambiente.

Fez-se um silêncio no público: todos aguardavam ansiosos um pavoroso embate mortal entre os quatro monstros felinos... E neste momento, como que sem querer, a donzela Cunegundes deixou cair, do alto do balcão, sua branca luva, bem no centro da arena, entre as quatro feras assustadoras. E dirigindo-se com um sorriso irônico ao seu cavaleiro adorador, falou, afetada:

"Cavaleiro Delorges, se de fato me amais como viveis repetindo, provai-o, indo buscar e me devolver a minha luva."

O cavaleiro Delorges não respondeu nada e sem titubear, desceu rápido do balcão e com passos decididos pisou na arena, entre as fauces hiantes e as presas arreganhadas das quatro feras. Calmo e firme ele apanhou a luva, e sem olhar para trás e sem apressar o passo, voltou para o balcão, sob os sussurros de espanto e admiração de todo o público presente.

A donzela Cunegundes estendeu a mão num gesto faceiro para receber a luva e com um sorriso cheio de promessas, falou:

"Ganhaste a minha gratidão, cavaleiro Delorges."

Mas em vez de entregar-lhe a luva, o cavaleiro Delorges atirou-a no belo rosto da dama cruel e orgulhosa: "Dispenso a vossa gratidão, senhora!", ele disse.

E voltando-lhe as costas, o cavaleiro Delorges foi embora para sempre.

 

 

 

 

 

Aconteceu na caatinga

Clotilde Tavares (novaescola@fvc.org.br)

Ilustração: Flavio Morais
Ilustração: Flavio Morais
Era meio-dia e a caatinga brilhava à luz incandescente do Sol. O pequeno Calango deslizou rápido sobre o solo seco, cheio de gravetos e pedras, parando na frente do majestoso Mandacaru, que apontava para o céu seus espinhos, os grandes braços abertos em cruz.

- Mandacaru! Mandacaru! Eu ouvi os homens conversando lá adiante e eles estavam dizendo que, como a caatinga está muito seca e cor de cinza, vão trazer do estrangeiro umas árvores que ficam sempre verdes quando crescem e estão sempre cheias de folhas.

- Mas que novidade é essa? - falou a Jurema.

- Coisa de gente besta - disse o Cardeiro, fazendo um muxoxo irritado e atirando espinhos para todo lado.

- Eu é que não acredito nessas novidades - sussurrou o pequeno e tímido Preá.

A velha Cobra, cheia de escamas de vidro e da idade do mundo, só fez balançar a cabeça de um lado para o outro e, como se achasse que não valia a pena falar, ficou em silêncio.

E no outro dia, bem cedinho, os homens já haviam plantado centenas de arvorezinhas muito agitadas, serelepes e faceiras, que falavam todas ao mesmo tempo na língua lá delas, reclamando de tudo: do Sol, da poeira, dos bichos e das plantas nativas, que elas achavam pobres, feias e espinhentas. Enquanto falavam, farfalhavam e balançavam os pequenos galhos, que iam crescendo, ganhando folhas e ficando cada vez mais fortes.

Enquanto isso, as plantas da caatinga, acostumadas a viver com pouca água, começaram a notar que essa água estava cada vez mais difícil de encontrar. As raízes do Mandacaru, da Jurema e do Cardeiro cavavam, cavavam e só encontravam a terra seca e esturricada.

O Calango então se reuniu com os outros bichos e plantas para encontrar uma solução. E foi a velha Cobra quem matou a charada:

- Quem está causando a seca são essas plantinhas importadas e metidas a besta! Eu me arrastei por debaixo da terra e vi o que elas fazem: bebem toda a nossa água e não deixam nada para a gente.

- Oxente! - gritou o Calango. - Então vou contar isso aos homens e pedir uma solução.

Mas logo o Calango voltou, triste e decepcionado.

- Os homens não me deram atenção - disse. - Falaram que eu não tenho instrução, não fiz universidade e que eu estou atrapalhando o progresso da caatinga.

E todos os bichos e plantas ficaram tristes, mas estavam com tanta sede que nem sequer puderam chorar: não havia água para fabricar as lágrimas. Por muitos dias ficaram assim e quando estavam à beira da morte houve um movimento: era o Preá, que levantou o narizinho, farejou o ar e, esquecendo a timidez, gritou:

- Estou sentindo cheiro de água!

- É mesmo! - gritaram todos.

- O que será que aconteceu? - perguntou a Jurema.

- Eu vou ver o que foi - e o Calango saiu veloz, espalhando poeira para todos os lados.

O Mandacaru estirou os braços, espreguiçou-se e sorriu:

- Estou recebendo água de novo! Hum... É muito bom! Mas vejam! O Calango está de volta com novidades!

E espichando meio palmo de língua de fora, morto de cansado pela carreira, o Calango contou tudo.

- As pequenas bandidas verdes, depois de beber quase toda a água da caatinga, estavam ameaçando a água dos rios e dos açudes perto das cidades. Os homens então viram o perigo e deram fim a todas elas. Estamos salvos!

E todos ficaram alegres, sentindo a água subir pelas raízes. Olharam para o céu azul da caatinga, aquele céu claro, o Sol brilhante, olharam uns para os outros e viram que eram irmãos, na mesma natureza, no mesmo tempo, na mesma Terra.

E a velha Cobra, desenroscando-se toda lentamente, piscou o olho e concluiu:

- É como dizia minha avó: cada macaco no seu galho!

 

 

 

 

Se Eu Fosse Esqueleto

Ricardo Azevedo (novaescola@fvc.org.br)

Se eu fosse esqueleto. Ilustração: Eduardo Recife
Se eu fosse esqueleto não ia poder tomar água nem suco porque ia vazar tudo e molhar a casa inteira.

Tirando isso, ia acordar e pular da cama feliz como um passarinho.

É que ser uma caveira de verdade deve ser muito divertido.

Por exemplo. Faz de conta que um banco está sendo assaltado. Aqueles bandidões nojentões, mauzões, armados até os dentões, berrando:

- Na moral! Cadê a grana?

Se eu fosse esqueleto, entrava no banco e gritava: bu!

Bastaria um simples bu e aquela bandidagem ia cair dura no chão, com as calças molhadas de úmido pavor.

O gerente e os clientes do banco iam agradecer e até me abraçar, só um pouco, mas tenho certeza de que iam.

Se eu fosse caveira, de repente vai ver que eu ia ser considerado um grande herói.

Fora isso, um esqueleto perambulando na rua em plena luz do dia causaria uma baita confusão. O povo correndo sem saber para onde, sirenes gemendo, gente que nunca rezou rezando, o Exército batendo em retirada, aquele mundaréu desesperado e eu lá, todo contente, assobiando na calçada.

Um repórter de TV, segurando o microfone, até podia chegar para me entrevistar:

- Quem é você?

E eu:

- Sou um esqueleto.

E o repórter:

- O senhor fugiu do cemitério?

Aí eu fingia que era surdo:

- Ser mistério?

E o repórter, de novo, mais alto:

- O senhor fugiu do cemitério?

- Assumiu no magistério?

- Cemitério!

- Fala sério? Quem?

Aí o repórter perdia a paciência:

- O senhor é surdo?

E eu:

- Claro que sou! Não está vendo que não tenho nem orelha?

Se eu fosse esqueleto talvez me levassem para a aula de Biologia de alguma escola. Já imagino eu lá parado e o professor tentando me explicar osso por osso, dente por dente, dizendo que os esqueletos são uma espécie de estrutura que segura nossas carnes, órgãos, nervos e músculos.

Fico pensando nas perguntas e nos comentários dos alunos:

- Como ele se chamava?

- É macho ou fêmea?

- Quantos anos ele tem?

- Tem ou tinha?

- Magrinho, não?

- O cara sabia ler ou era analfabeto?

- E a família dele?

- Era rico ou pobre?

- O coitado está rindo de quê?

E ainda:

- Professor, ele era careca?

Enquanto isso, eu lá, no meio da aula, com aquela cara de caveira, sem falar nada para não assustar os alunos e matar o professor do coração.

Uma coisa é certa. Deve ser muito bom ser esqueleto quando chega o Carnaval. Aí a gente nem precisa se fantasiar. Pode sair de casa numa boa, cair no samba, virar folião e seguir pela rua dançando, brincando e sacudindo os ossos. Parece mentira, mas, no Carnaval, porque é tudo brincadeira, a gente sempre acaba sendo do jeito que a gente é de verdade.

Se eu fosse esqueleto, quando chegasse o Carnaval, ia sair cantando:

Quando eu morrer
Não quero choro nem vela
Quero uma fita amarela
Gravada com o nome dela


Todo mundo sabe que o maior amigo do homem é o cachorro.

O que a maioria infelizmente desconhece e a ciência moderna esqueceu de pesquisar é que o pior inimigo do esqueleto late, morde, abana o rabo, carrega pulgas e aprecia fazer xixi no poste.

E se eu fosse esqueleto e por acaso um vira-lata me visse na rua, corresse atrás de mim e fugisse com algum osso dos meus?

 

 

 

 

 

 

 

Bruxas não existem

Bruxas não existem. Ilustração: Denis Freitas
Quando eu era garoto, acreditava em bruxas, mulheres malvadas que passavam o tempo todo maquinando coisas perversas. Os meus amigos também acreditavam nisso. A prova para nós era uma mulher muito velha, uma solteirona que morava numa casinha caindo aos pedaços no fim de nossa rua. Seu nome era Ana Custódio, mas nós só a chamávamos de "bruxa".

Era muito feia, ela; gorda, enorme, os cabelos pareciam palha, o nariz era comprido, ela tinha uma enorme verruga no queixo. E estava sempre falando sozinha. Nunca tínhamos entrado na casa, mas tínhamos a certeza de que, se fizéssemos isso, nós a encontraríamos preparando venenos num grande caldeirão.

Nossa diversão predileta era incomodá-la. Volta e meia invadíamos o pequeno pátio para dali roubar frutas e quando, por acaso, a velha saía à rua para fazer compras no pequeno armazém ali perto, corríamos atrás dela gritando "bruxa, bruxa!".

Um dia encontramos, no meio da rua, um bode morto. A quem pertencera esse animal nós não sabíamos, mas logo descobrimos o que fazer com ele: jogá-lo na casa da bruxa. O que seria fácil. Ao contrário do que sempre acontecia, naquela manhã, e talvez por esquecimento, ela deixara aberta a janela da frente. Sob comando do João Pedro, que era o nosso líder, levantamos o bicho, que era grande e pesava bastante, e com muito esforço nós o levamos até a janela. Tentamos empurrá-lo para dentro, mas aí os chifres ficaram presos na cortina.

- Vamos logo - gritava o João Pedro -, antes que a bruxa apareça. E ela apareceu. No momento exato em que, finalmente, conseguíamos introduzir o bode pela janela, a porta se abriu e ali estava ela, a bruxa, empunhando um cabo de vassoura. Rindo, saímos correndo. Eu, gordinho, era o último.

E então aconteceu. De repente, enfiei o pé num buraco e caí. De imediato senti uma dor terrível na perna e não tive dúvida: estava quebrada. Gemendo, tentei me levantar, mas não consegui. E a bruxa, caminhando com dificuldade, mas com o cabo de vassoura na mão, aproximava-se. Àquela altura a turma estava longe, ninguém poderia me ajudar. E a mulher sem dúvida descarregaria em mim sua fúria.

Em um momento, ela estava junto a mim, transtornada de raiva. Mas aí viu a minha perna, e instantaneamente mudou. Agachou-se junto a mim e começou a examiná-la com uma habilidade surpreendente.

- Está quebrada - disse por fim. - Mas podemos dar um jeito. Não se preocupe, sei fazer isso. Fui enfermeira muitos anos, trabalhei em hospital. Confie em mim.

Dividiu o cabo de vassoura em três pedaços e com eles, e com seu cinto de pano, improvisou uma tala, imobilizando-me a perna. A dor diminuiu muito e, amparado nela, fui até minha casa. "Chame uma ambulância", disse a mulher à minha mãe. Sorriu.

Tudo ficou bem. Levaram-me para o hospital, o médico engessou minha perna e em poucas semanas eu estava recuperado. Desde então, deixei de acreditar em bruxas. E tornei-me grande amigo de uma senhora que morava em minha rua, uma senhora muito boa que se chamava Ana Custódio.

 

 

Vampi & O Presente Mágico

Regina Drummond (novaescola@fvc.org.br)
Vampi e o presente mágico. Ilustração: Fábio Lucca
Vampi, a vampira chique e cheia de imaginação, morava numa casinha em cima de uma árvore. Um dia, ela ganhou de presente um carro conversível rosa-choque.

Vampi montou, acelerou com força e buzinou forte - Fon-fon!

O carro furou o ar e sumiu pelo mundo afora.

Vampi viu um trem grande e comprido, viu ônibus pequenos e curtos.

Viu prédios cinzentos, viu casas coloridas.

Viu ruas com gente apressada e becos onde só tinha fantasma, uh...

Viu gente, bicho, planta.

Redondo, quadrado, oval e retangular.

Viu o céu, viu o mar, viu a montanha.

Azul e violeta, laranja e vermelho, verde em mil tons.

Viu nuvens brancas, apertou um botão e voou.

Os pássaros passavam pertinho e tudo era pequenininho, lá embaixo...

Vampi só ria, fazendo bi-bi, fon-fon e pedalando, pedindo passagem para as estrelas, que eram maiores do que ela, vejam só!

De olho na volta, procurou um lugar para aterrissar, mas, ao ajeitar o cabelo, errou o alvo e caiu no mar.

Opa! Apertou outro botão, o carrinhoavião virou navio, flutuou, começou a afundar e já era um submarino, quase um peixe, nadando no meio das algas e dos corais...

Um peixe olhou para ela, dois peixes, três, quatro, cinco, mil, um cardume inteiro, quantos peixes são?

Nem deu tempo de contar. Devagarinho, o submarino subiu, virou navio, flutuou, virou avião, pousou e virou carrinho outra vez, parando ao pé da sua árvore. Na mesma hora, nasceram seis patas no lugar das rodas, e ele virou uma aranha, que subiu pelo tronco até alcançar os altos galhos cheios de folhas... Atravessando-os como se fosse um fantasma, levou Vampi de volta para casa.

"Puxa, meu carro é mágico!" - disse ela, encantada, saindo por cima, sem abrir a porta. Mas logo mudou de ideia: sentando-se outra vez no seu carrinho rosa-choque, Vampi riu, sonhando com a próxima aventura.



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